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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

DIAGNÓSTICO ERRADO



Não tentes tirar uma idéia da cabeça de outrem porque,
examinando bem, verás que em geral não se trata de idéias,
mas de convicções. São inextirpáveis.
É a causa única de todas as guerras políticas ou religiosas,
paroquianas ou internacionais.

Mario Quintana ,
in A Vaca e o Hipogrifo

Os caminhos estão cheios de tentações


Os caminhos estão cheios de tentações.

Os nossos pés arrastam-se na areia lúbrica...

Oh! tomemos os barcos das nuvens!

Enfunemos as velas dos ventos!

Os nossos lábios tensos incomodam-nos como estranhas mordaças.

Vamos! vamos lançar no espaço - alto, cada vez mais alto! - a rede das estrelas...

Mas vem da terra, sobe da terra, insistente, pesado,

Um cheiro quente de cabelos...

A Esfinge mia como uma gata.

E o seu grito agudo agita a insônia dos adolescentes pálidos,

O sono febril das virgens nos seus leitos.

De que nos serve agora o Cristo do Corcovado?!

Há um longo, um arquejante frêmito nas palmeiras, em torno...

A Noite negra, demoradamente,

Aperta o mundo entre os seus joelhos.


Mario Quintana -
O Aprendiz de Feiticeiro, 1950

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

VENTO



Pastor das nuvens.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Melancolia



Maneira romântica de ficar triste.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987

INFÂNCIA




é quando as portas são fechadas
e abertas ao mesmo tempo,
é quando estamos metade na luz
e a outra metade na escuridão,
é quando o mundo real chama
e preferimos outro...

Mario Quintana
in Esconderijos do Tempo

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Linha Reta




Linha sem imaginação.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Linha Curva



O caminho mais agradável entre dois pontos.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Verso Avulso



O luar é a luz do sol que está dormindo...

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987

O Eterno Espanto



Que haverá com a lua que sempre que a gente
a olha é com o súbito espanto da primeira vez?

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Do Amoroso Esquecimento


Eu agora, – que desfecho!
Já nem penso mais em ti…
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Mario Quintana,
in- Espelho Mágico






A GRANDE CATÁSTROFE


No princípio era o verbo. O verbo Ser.
 Conjugava-seapenas no infinitivo. Ser, e nada mais.
Intransitivo absoluto.
Isto foi no princípio. Depois transigiu, e muito.
Em vários modos, tempos e pessoas: eu, tu, ele, nós ,vós,
eles...
Principalmente eles!
E, ante essa dispersão lamentável, essa verdadeira explosão
do SER em seres, até hoje os anjos ingenuamente se
interrogam por que motivo as referidas pessoas chamam a
isso de CRIAÇÃO...


Mario Quintana
In Na Volta da Esquina














terça-feira, 26 de novembro de 2013

"O Vento e Eu"


O vento morria de tédio
porque apenas gostava de cantar
mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
cada vez mais vazia...
Tentei então compor-lhe uma canção
tão comprida como a minha vida
e com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
e fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
Mas o vento, por isso,
me julga agora como ele...
E me dedica um amor solidário, profundo!



Mario Quintana
de 'Velório sem Defunto'

[Tela by Dima Dmitriev]

CANÇÃO DE JUNTO DO BERÇO .



Não te movas,dorme,dorme
O teu sorriso tranquilo.
Não te movas (diz-lhe a Noite)
Que inda está cantando um grilo...
.
Abre os teus olhinhos de ouro
(O dia lhe diz baixinho).
É tempo de levantares
Que já canta um passarinho...
.
Sozinho, que pode um grilo
Quando já tudo é revoada?
E o Dia rouba o menino
No manto da madrugada...
.
Mario Quintana
In "Lili Inventa o Mundo"


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

LXXVIII. DA PREGUIÇA


Suave Preguiça, que do mal-querer
E de tolices mil ao abrigo nos pões...
Por causa tua, quantas más ações
Deixei de cometer!
 
Mario Quintana;
in Espelho Mágico

LXXXIII. DO MAL DA VELHICE




Chega a velhice um dia... E a gente ainda pensa
Que vive... E adora ainda mais a vida!
Como o enfermo que em vez de dar combate à doença
Busca torná-la ainda mais comprida...

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

LXXXVIII. DA RIQUEZA



O dinheiro não traz venturas, certamente.
Mas dá algum conforto... E em verdade te digo:
Sempre é melhor chorar junto à lareira quente
Do que na rua, ao desabrigo.

Mario Quintana;
in Espelho Mágico



domingo, 24 de novembro de 2013

CONFESSIONAL




Eu fui um menino por trás de uma vidraça - um menino
de aquário.
Via o mundo passar como numa tela cinematográfica,
mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas
personagens.
Tudo tão chato que o desenrolar da rua acabava me
parecendo apenas em preto-e-branco, como nos filmes
daquele tempo.
O colorido todo se refugiava, então, nas ilustrações
dos meus livros de histórias, com seus reis
hieráticos e belos como os das cartas de jogar.
E suas filhas nas torres altas - inacessíveis princesas.
Com seus cavalos uns verdadeiros príncipes na
elegância e na riqueza dos jaezes.
Seus bravos pajens (eu queria ser um deles...)
Porém, sobrevivi...
E aqui, do lado de fora, neste mundo em que vivo,
como tudo é diferente! Tudo, ó menino do aquário,
é muito diferente do teu sonho..
(Só os cavalos conservam a natural nobreza.)

Mario Quintana,
in A vaca e o hipogrifo







sábado, 23 de novembro de 2013

“A TERRA”



As fronteiras foram riscadas no mapa,
A terra não sabe disso:
São para elas tão inexistentes
Como esses medianos com que os velhos
Sábios a recortaram como se fosse um
Melão.

É verdade que vem sentindo há muito uns

pruridos, uma leve comichão que às vezes
se agrava: ela não sabe que são os homens...
Ela não sabe que são os homens com as suas
Guerras e outros meios de comunicação.

Mario Quintana

In “A vaca e o hipogrifo”








sexta-feira, 22 de novembro de 2013

PROJETO DE PREFÁCIO



Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um
detalhe
Um poema não é também quando paras no fim
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba
preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!

Mario Quintana
In Baú de Espantos





LXXXIX. DA ALEGRIA NAS ATRIBULAÇÕES



"Olha! o melhor é sorrires!"
Mas já se viu que lembrança!
Dá-me primeiro a bonança,
Que eu te darei o arco íris...

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

XCVI. DOS HÓSPEDES




Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia...

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

CI. DA HUMANA CONDIÇÃO



Custa o rico a entrar no Céu
(Afirma o povo e não erra).
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na terra...


Mario Quintana;
in Espelho Mágico

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Se eu Fosse um Padre



Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!


Mário Quintana,
in  Antologia Poética

VIAGEM FUTURA


Um dia aparecerão minhas tatuagens invisíveis:
marinheiro do além, encontrarei nos portos
caras amigas, estranhas caras, desconhecidos tios mortos
e eles me indagarão se é muito longe ainda o outro mundo...

Mário Quintana

In: Esconderijos do Tempo

AS TRÊS MARIAS


As únicas estrelas que eu conheço no céu são as Três Marias.
Três Marias é um apelido de família... O nome delas é outro,
sabem como é a coisa: um desses nomes roubados a mitologias
ultrapassadas, com que costumam exorcizar as estrelas.
Uns nomes que já nasceram póstumos...
Só o que eles sabem é enumerar, mapear, coisas assim trabalho
apenas digno de robôs.
Olhem, Marias, acheguem-se, escutem: Vocês foram catalogadas.
Ouviram bem? Ca-ta-lo-ga-das! O consolo é o povo, que ainda
diz ignorantemente: "Olha lá as Três Marias!"


Mario Quintana ,
in A Vaca e o Hipogrifo

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O APANHADOR DE POEMAS




Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro
engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso
um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro.
Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o
espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência
e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe
armemos ciladas: com rimas, que são o seu alpiste;
há poemas que só se deixam apanhar com isto.
Outros que só ficam presos atrás das catorze grades
de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias
e aliterações, para que ele cante. É preciso
recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar.
E há os poemas livres, imprevisíveis, esses é
preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.

Mario Quintana,
in Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)





domingo, 17 de novembro de 2013

BILHETE


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
Enfim
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve
ainda...
 
Mario Quintana
In Melhores Poemas

QUEM BATE?



Cecília.Cecília que chega de um pátio da infância...
Traz ainda sereno nas tranças, seus sapatinhos andaram
pulando na grama...Depois assenta-se nos degraus da
torre, e canta...
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe as tranças, teceu
cordoalhas para o seu navio.Mas o chaveiro do sonho
pegou-lhe a canção...E fez um vento longo e triste.
E eu pensava que toda a minha tristeza vinha apenas
do vento, da solidão do mar, da incerteza daquela
viagem num navio perdido. 
Mario Quintana
In Sapato Florido

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

AQUARELA DE APÓS-CHUVA



No peitoril de todas as janelas
Há uma flor convalescente...
No céu desenha-se um pálido sorriso...
Só o teu nome, que estava quase desmaiado no meu peito,
Aviva-se em brasa como uma cicatriz.


Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural

'Da caridade'


Se se pudesse dar, indefinidamente,
Mas sem, do que se deu, nada perder, em suma,
Ainda assim, muita gente
Nunca daria coisa alguma...


Mário Quintana
Apontamentos de história sobrenatural


Cântico



O vento verga as árvores, o vento clamoroso da
aurora...

Tu vens precedida pelos vôos altos,
Pela marcha lenta das nuvens.
Tu vens do mar, comandando as frotas do
Descobrimento!

Minh'alma é trêmula da revoada dos Arcanjos.
Eu escancaro amplamente as janelas.
Tu vens montada no claro touro da aurora.
Os clarins de ouro dos teus cabelos na luz!


Mario Quintana;
in O Aprendiz de Feiticeiro


DE REPENTE



Olho-te espantado:
Tu és uma estrela do mar.
Um mistério estranho.
Não sei...
No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão,
Era sempre o teu seio!
Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão...
Mas agora encheram-se de sombra os cântaros
E só o meu cavalo pasta na solidão.
Mário Quintana
in O aprendiz de feiticeiro






OBSESSÃO DO MAR OCEANO



Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.


Mario Quintana
in O aprendiz de Feiticeiro



quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O POBRE POEMA


Eu escrevi um poema horrível!
É claro que ele queria dizer alguma coisa...
Mas o quê?
Estaria engasgado?
Nas suas meias-palavras havia no entanto uma ternura
mansa como a que se vê nos olhos de uma criança
doente, uma precoce, incompreensível gravidade
de quem, sem ler os jornais,
soubesse dos seqüestros
dos que morrem sem culpa
dos que se desviam porque todos os caminhos estão
[tomados...
Poema, menininho condenado,
bem se via que ele não era deste mundo
nem para este mundo...
Tomado, então, de um ódio insensato,
esse ódio que enlouquece os homens ante a
[insuportável
verdade, dilacerei-o em mil pedaços.
E respirei...
Também! quem mandou ter ele nascido no mundo
[errado?



Mario Quintana
In Baú de Espantos

MARIA



Que Linda estavas no dia
Da Primeira Comunhão.
Toda de branco, Maria,
Com rosas brancas na mão.

Nossa Senhora esquecia
Ao ver-te, a sua aflição,
E eu, contrito que heresia! -
Te rezava uma oração.

Pois quando te vi, de joelhos,
Pousar os lábios vermelhos
Nos pés do Cristo, supus

Que eras Santa Teresinha,
A mais linda e mais novinha
Das esposas de Jesus!


Mario Quintana
In Baú de Espantos

A CASA FANTASMA



A casa está morta?
Não: a casa é um fantasma,
um fantasma que sonha
com a sua porta de pesada aldrava,
com os seus intermináveis corredores
que saíam a explorar no escuro os mistérios da noite
e que as luas, por vezes,
enchiam de um lívido assombro...
Sim!
agora
a casa está sonhando
com o seu pátio de meninos pássaros.
A casa escuta... Meu Deus! a casa está louca, ela não
[sabe
que em seu lugar se ergue um monstro de cimento e
[aço:
há sempre uma cidade dentro de outra
e esse eterno desentendido entre o Espaço e o Tempo.
Casa que teimas em existir
a coitadinha da velha casa!
Eu também não consegui nunca afugentar meus
[pássaros.

Mario Quintana
In Baú de Espantos

O DESCOBRIDOR



Ah, essa gente que me encomenda
um poema
com tema...
Como eu vou saber, pobre arqueólogo do futuro,
o que inquietamente procuro
em minhas escavações do ar?

Nesse futuro,
tão imperfeito,
vão dar,
desde o mais inocente nascituro,
suntuosas princesas mortas há milênios,
palavras desconhecidas mas com todas as letras
misteriosamente acesas
palavras quotidianas
enfim libertas de qualquer objeto
E os objetos...
Os atônitos objetos que não sabem mais o que são
no terror delicioso
da Transfiguração!

Mario Quintana
In Baú de Espantos


O SEGUNDO MANDAMENTO


Bem sei que não se deve dizer o Seu Santo nome em
Vão.
Mas, agora,
o seu nome é apenas uma interjeição
como acontece com Minha Nossa Senhora!
este belíssimo grito tão certamente errado
como o faz tanta vez o povo em suas descobertas.
A voz do Povo é um Livro de Revelações.
Só tem que o tempo as foi sedimentando em sucessivas
camadas
E elas agora nos dizem tanto como uma pedra.
Agora restam-nos apenas as palavras técnicas
pertencentes ao vocabulário inerte dos robôs.
Porém um dia as pedras se iluminarão milagrosamente
por dentro.
porque só termina para todo o sempre o que foi
artificialmente construído...
Um dia,
um dia as pedras gritarão!

Mario Quintana
In Baú de Espantos

Escadas


Escadas de caracol
Sempre
São misteriosas, conturbam...
Quando as desce, a gente
Se desparafusa...
Quando a gente as sobe
Se parafusa
- o peito
estreito -
o teto descendo
Descendo, descendo como nas histórias de imortal horror!
Mas de que jeito,
Mas como pode ser,
Morrer cair rolar por uma escada de parafuso?
Além disso não têm, pelo que dizem, nenhuma acústica...
Oh! não há como as escadarias daqueles antigos edifícios públicos
Para ser assassinado...
Porém não fiques tão eufórico,
- nem tudo são rosas:
Há,
No sonho das velhas casas de cômodos onde moras,
Passos que vêm subindo degrau por degrau em direção ao teu quarto
E “sabes” que é um fantasma chamejante e fosfóreo
- o corpo todo feito de inconsumíveis labaredas verdes!
O melhor
Mesmo
É fechar os olhos
E pensar numa outra coisa...
Pensa, pensa
- o quanto antes!
Naquelas pobres escadarias de madeira das casas pobres
-escurinho dos teus primeiros aconchegos...
Pensa em cascatas de risos
Escada abaixo
De crianças deixando a escola...
Pensa na escada do poema
Que tu
comigo
vens descendo
agora...
(Hoje em dia todas as escadas são para descer)
Mas não! este poema não é
Nenhum
Abrigo
Antiaéreo...
Ah, tu querias que eu te embalasse?!
Eu estava, apenas, explorando uns abismos...


Mário Quintana
in Apontamentos de história sobrenatural



terça-feira, 12 de novembro de 2013

ERA UM LUGAR



Era um lugar em que Deus ainda acreditava na gente...
Verdade
que se ia à missa quase só para namorar
mas tão inocentemente
que não passava de um jeito, um tanto diferente,
de rezar
enquanto, do púlpito, o padre clamava possesso
contra pecados enormes.
Meu Deus. até o Diabo envergonhava-se.
Afinal de contas, não se estava em nenhuma
Babilônia...
Era, tão só, uma cidade pequena,
com seus pequenos vícios e suas pequenas virtudes:
um verdadeiro descanso para a milícia dos Anjos com
suas espadas de fogo.
- um amor!
Agora, aquela antiga cidadezinha está dormindo para
sempre
em sua redoma azul, em um dos museus do Céu.


Mario Quintana
In Baú de Espantos

RECORDO AINDA...


Recordo ainda ... E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite mortal!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada fora após segui... Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

Mario Quintana
de Nariz de Vidro

Intermezzo



Nem tudo pode estar sumido
ou consumido…
Deve – forçosamente – a qualquer instante
formar-se, pobre amigo, uma bolha de tempo nessa Eternidade…
e onde
- o mesmo barman no mesmo balcão,
por trás a esplêndida biblioteca de garrafas,
fonte de nossa colorida erudição -
haveremos de continuar aquela nossa velha discussão
sobre tudo e nada
até
que, fartos de tudo e nada,
desta e da outra vida,
a rir como uns perdidos,
a chorar como uns danados,
beberemos os dois nos crânios um do outro…
até o teto desabar!
(Perdão! até a bolha rebentar…)


Mario Quintana
in: Esconderijos do Tempo

A Arte de Ler



O leitor que mais admiro é aquele que não chegou
até a presente linha.
Neste momento já interrompeu a leitura e está
continuando a viagem por conta própria.

- Mario Quintana,
in: Caderno H




domingo, 10 de novembro de 2013

CONTO AZUL


 
A morte é tão antiquada
que sempre entra pela porta da rua
e sobe só pelas escadas.
Mandei pensando nisso fazer uma escada de caracol
para que ela chegasse tonta ao meu quarto
- coisa de rir!
Ela se deixaria então cair na primeira cadeira,
arfando...
Mas quem foi que disse que ela tem cara de caveira?
É uma simpática vovozinha.
Sorrio-lhe do meu leito,
embora me sinta um pouco triste...
porque é bom estar para morrer
da mesma forma que é bom estar numa sala de espera
folheando revistas velhas...
É isto! Folheio essas estampas
de minha memória,
meio desbotadas...
Súbito, um lábio vermelho desenha-se entre elas
como se acabasse de ser traçado a batom!
O resto, é tudo no mesmo tom.
Espio, para variar, o azul do céu lá fora,
para onde estão olhando outros que em breve
terão alta.
As visitas do médico têm sido cada vez mais espaçadas
e mais rápidas.
E sinto que em breve ele se cruzará no caminho com o padre:
“É a sua vez, agora!”
Qual! Isso seria melodramático
que nem novela de tevê...
Na sua cadeira a morte espera, paciente
(ela não é nenhuma assassina).
Ela deveria fazer tricô...
mas para que? Mas para quem?
Agora, uma asa paira no azul.
Paira no azul...
Não atribuas a isso qualquer intenção simbólica:
tudo é tão simples...
Aliás, eu me achava tão longe...
O que sempre salvou a morte (e a vida) da gente
é pensar em outras bobagens...


Mario Quintana, in
A Vaca e o Hipogrifo
1977















OS ETERNOS DEUSES


Os deuses não sabem apanhar o momento esvoaçante
como quem aprisiona um besouro na mão,
não sabem o contacto delicioso, inquietante
de que – só uma vez! - os dedos reterão...
Em sua pobre eternidade, os deuses
desconhecem o preço único do instante...
e esse despertar, ainda palpitante,
de quem cortasse em meio um sonho vão.
No entanto a vida não é um sonho...Não:
aberta numa flor ou na polpa de um fruto,
a vida aí está eterna: nossa mão
é que dispõe apenas de um minuto.
E todos os encontros são adeuses...
(Como riem, meu pobre amor...Como riem, de nós,
esses eternos deuses!)



Mario Quintana
in: Baú de espantos.


















sábado, 9 de novembro de 2013

HORROR



Com os seu OO de espanto,
seus RR guturais, seu hirto H,
HORROR é uma palavra de cabelos em pé,
assustada da própria significação.

Mario Quintana,
in Sapato Florido

A JANELA



Sento me a mesa. Quem sabe? Quem se senta, se tenta...
60, 70, escrevo, arredondando caprichosamente os zeros.
E o burro do papel me fica incompreensivelmente olhando,
na espera inútil dos 80. O papel está hoje com uma
abominável falta de imaginação. Continua, apenas,
olhando-me: vazio, mais quadrado do que nunca.
orque o papel é uma janela que, em vez de a gente
espiar por ela, ela é que espia para a gente...

Mario Quintana, in
Caderno H



sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Pensamento para o teu Aniversário



Nem todos podem estar na flor da idade, é claro!
Mas cada um está na flor da sua idade...

Mario Quintana,
in  Caderno H

LUZ PRÓPRIA



  Os sonhos tem luz própria, uma luz que não vem de
 nenhum sol, de nenhuma lua, de nenhum foco.
 Está em toda parte. Na próxima vez que sonhares,
 procura ver se o teu vulto projeta alguma sombra.
 E se a tua imagem se reflete nalgum espelho.
 Tolice minha! Nos salões do sonho nunca há espelhos...

 Mario Quintana,
 in - Caderno H

PRIMAVERA



 A primavera é a estação dos risos etc. etc.
 Mal treme a brisa e mal palpita o lago.
 Mas de que brisa me hablas, Casimiro?
 E vento, e chuva - é isto!
 Ah, pelo que vocês dizem e pelo que se vê,
 a primavera é apenas uma licença poética...

 Mario Quintana,
 in  Porta Giratória - 1988