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domingo, 26 de janeiro de 2014

“OS EXCITANTES E A SATURAÇÃO”




Antes era a ponta do o pé, nos primeiro tempos do romantismo;
depois, os braços, de que o velho machado não tirava os olhos.
Agora, que está tudo à mostra, ninguém nota. O mesmo que se
dá com a literatura,Onde tudo se nomeia e nada se diz. E, com
a imaginação é que excita e, faltando ela, tudo falta, veio o pulo.
O barulho, o berro, para substituir a dança, a música, o canto.
Em todo caso, é de esperar que não se esteja regredindo. Apenas
Uma pausa. Talvez uma necessária sonoterapia na arte de sentir e
de expressar-se.


Mario Quintana
In “A vaca e o hipogrifo”












“LIBERTAÇÃO”



...Até que um dia, por astúcia ou acaso, depois
De quase todos os enganos, ele descobriu a por-
ta do labirinto.
...nada de ir tateando os muros como um cego.
Nada de muros.
Seus passos tinham – enfim! – a liberdade de
Traçar seus próprios labirintos.


Mario Quintana
In “A vaca e o hipogrifo”


VERÃO



Há sempre, afastada das outras,
uma nuvenzinha preguiçosa que
ficou sesteando no azul.

Mario Quintana ,
in Caderno H


QUEM DISSE QUE EU ME MUDEI?


Não importa que a tenham demolido:
A gente continua morando na velha casa
em que nasceu.

Mario Quintana,
in Preparativos de viagem

MENTIRAS



Lili vive no mundo do Faz-de-Conta...
Faz de que conta que isto é um avião. Zzzzuuu...
Depois aterrissou em pique e virou trem. Tuc tuc tuc tuc...
Entrou pelo túnel, chispando. Mas debaixo da mesa havia
bandidos. Pum! Pum! Pum! O trem descarrilou. E o mocinho?
Onde é que está o mocinho? Meu Deus! Onde é que está o
mocinho?! No auge da confusão, levaram Lili para a cama,
à força. E o trem ficou tristemente derribado no chão,
fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha.

Mario Quintana,
in Sapato Florido

CANÇÃO DE MUITO LONGE




Foi-por-cau-sa-do-bar-quei-ro

E todas as noites, sob o velho céu arqueado de bugigangas,
A mesma canção jubilosa se erguia.

A canoooavirou
Quemfez elavirar? uma voz perguntava.

Os luares extáticos...

A noite parada...

Foi por causa do barqueiro
que não soube remar.


Mario Quintana,
in Nova Antologia Poética

TOPOGRAFIA




Meu bonde passa por ali. Pela sua esquina, apenas.
É uma ruazinha tão discreta que logo faz uma curva
e o olhar não pode devassá-la. Não lhe sei o nome,
nem nunca andei por ela. Mas faz anos que me vem
alimentando de mistério. Se eu fosse lá, encontraria
alguns poetas: o Marcelo, o Wamosy, o Juca...
todos mortos de há muito, todos no mesmo bar.
Ah! Ruazinha... ruazinha que leva à Babilônia,
eu sei... ao porto inventado de Stargiris...
a regiões entressonhadas a medo.

Mario Quintana,
in 80 anos de poesia


POEMA PARA UMA EXPOSIÇÃO



O quadro na parede abre uma janela
que dá para o outro mundo
deste mundo...

Um mundo isento de rumores
e de mil flutuações atmosféricas
– alheio a toda humana contingência...

Onde um momento é sempre
e o mal e o bem não têm nenhum sentido...

Mundo
em que a forma também é a própria essência.

Ó Vida
Transfixada ao muro – e que palpita,
entanto,
num misterioso, eterno movimento!


Mario Quintana,
in A Cor do Invisível


A CIRANDA




Meninazinha bonita dos olhos ingênuos e grandes,
uma vez na ciranda eu perdi tua mão...
Sinto ainda fugir-me à flor da pele, aflita,
sua desesperada e última pressão!

E a vida continuou, ora em lenta pavana,
ora numa quadrilha, em tonta confusão.
Quantas vezes julguei, mas foi sempre ilusão,
viver aquela hora, entre as horas benditas,

que uniu palma com palma e alma contra alma...
Mas que busco afinal, que miragem acalma
tão inquieta procura em um mundo já findo?

Porem, o mundo não é só o que se ve...
Talvez um dia eu morrerei sorrindo,
e só os anjos saberão por que!

Mario Quintana,
in- Baú de espantos

O VISITANTE MATINAL






Para que nomes? Era azul e voava...

Mario Quintana,
in Preparativos de Viagem



NOSTALGIAS



Há tempos escrevi este decassílabo nostálgico:
“Acabaram-se os bondes amarelos!”
Tão nostálgico que até hoje ficou sozinho esperando o resto
dos companheiros.
Também, não faz muito, escrevi este outro decassílabo:
“Acabaram-se as tias solteironas...”
Talvez esses dois solitários se venham um dia a reunir
num mesmo poema.
Têm ambos o mesmo ritmo. Causam ambos o mesmo nó na
garganta que me impede de os continuar.
Talvez o poema já esteja pronto... e ninguém notou.
Nem eu!
Porque ele próprio se completou, cada verso chorando
no ombro do outro...
E sem mesmo notar que eram decassílabos!

Mario Quintana,
in Porta Giratória

A PORTA



Quem atravessa a porta da única parede de uma casa
em ruínas é como se passasse para o Outro Mundo.

Mario Quintana,
in Porta Giratória

A TROVA



 Trova: soneto do povo,
Flor de nostálgico encanto...
Todo o infinito do amor
Numa só gota de pranto.


MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989


TROVA [2]



Quem as suas mágoas canta
Quando acaso as canta bem
Não canta só suas mágoas,
Canta a de todos também.

MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989


TROVA [1]




Coração que bate-bate
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão batendo sem sofrer.


MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989

ESSA LEMBRANÇA QUE NOS VEM




Essa lembrança que nos vem às vezes...
folha súbita
que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...
Essa lembrança... mas de onde? de quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida...
Ai! tão perdida
que nem se possa saber mais de quem!


MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989

DO MAL E DO BEM



"Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos...
Já viste as flores que a mentira dá ?"

Mário Quintana,
in Espelho Mágico, 1945

Os Girassóis



Os girassóis são as flores da retórica.

Mario Quintana
- (In: Da Preguiça como Método de Trabalho)

XL. "DO SABOR DAS COISAS



 Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...

Mario Quintana,
In: Espelho Mágico

Os Sonhos das Lagartas




As lagartas não podem acreditar na lenda das
borboletas - tão antiga entre o seu rastejante e
esforçado povo... mas sua felicidade consiste
em relembrar, às vezes, o absurdo e maravilha
desse velho sonho: o de se transformarem,
um dia, em borboletas.


Mario Quintana,
in Lili Inventa o Mundo




A Arte de Ser Bom



Sê bom. Mas ao coração Prudência e cautela ajunta.
Quem todo de mel se unta,os ursos o lamberão.

Mario Quintana ,
in Espelho Mágico



EPÍSTOLA AOS NOVOS BÁRBAROS


Jamais compreendereis a terrível simplicidade das minhas palavras
porque elas não são palavras: são rios, pássaros, naves...
no rumo de vossas almas bárbaras.

Sim. vós tendes as vossas almas supersticiosamente pintadas,
e não apenas a cara e o corpo como os verdadeiros selvagens.

Sabeis somente dar ouvido a palavras que não compreendeis,
e todos os VOSSOS deuses são nascidos do medo.

E eu na verdade não vos trago a mensagem de nenhum deus.
Nem a minha...

Vim sacudir o que estava dormindo há tanto dentro de cada
um de vós,
a limpar-vos de vossas tatuagens.

E o frêmito que sentireis, então, nas almas transfiguradas
não será do revôo dos anjos... Mas apenas
o beijo amoroso e invisível do vento
sobre a pele nua.


Mario Quintana,
in Baú de espantos

DATA E DEDICATÓRIA




Teus poemas, não os dates nunca... Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

Mario Quintana,
in Baú de espantos