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domingo, 30 de março de 2014

''Quando eu me for''



Quando eu me for, os caminhos continuarão andando...
E os meus sapatos também!
Porque os quartos, as casas que habitamos,
Todas, todas as coisas que foram nossas na vida
Possuem igualmente os seus fantasmas próprios,
Para alucinarem as nossas noites de insônia!

Mario Quintana;
de Velório sem defunto, 1990


O SILÊNCIO



Há um grande silêncio que está à escuta...

E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta... 
e cala.

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo










sexta-feira, 28 de março de 2014

CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO




Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha Poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.


Mario Quintana,
in  Antologia Poética








quinta-feira, 27 de março de 2014

Eu Escrevi um Poema Triste


Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


Mario Quintana
In  Melhores Poemas













Canção do dia de sempre



Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


Mario Quintana ,
in Preparativos de Viagem













sábado, 8 de março de 2014

O MOTIVO DA ROSA



A ROSA, bela Infanta das sete saias
E cuja estirpe não lhe rouba, entanto,
O ar de menina, o recato encanto
Da mais humilde de suas aias,
A rosa, essa presença feminina,
Que é toda feita de perfume e alma,
Que tanto excita como tanto acalma,
A rosa... é como estar junto da gente
Um corpo cuja posse se demora
- brutal que o tenhas nesta mesma hora,
Em sua virgindade inexperiente...
Rosa, ó fiel promessa de ventura
Em flor... rosa paciente, ardente, pura!

Mario Quintana
In: Apontamentos de História sobrenatural



sexta-feira, 7 de março de 2014

TU LEMBRAS DAQUELES GRANDES ESPELHOS...



”Tu lembras daqueles grandes espelhos côncavos ou convexos
 que, em certos estabelecimentos, os proprietários colocavam
 à entrada para atrair os fregueses, achatando-os,
 alongando-os, deformando-os nas mais estranhas configurações?
 Nós, as crianças de então, achávamos uma bruta graça,
 por saber  que era tudo ilusão, embora talvez nem conhecêssemos
 o sentido da palavra “ilusão”.
 Não, nós bem sabíamos que não éramos aquilo!

 Depois, ao crescer, descobrimos que, para os outros, não éramos
 precisamente isto que somos, mas aquilo que os outros vêem.

 Cuidado, incauto leitor! Há casos, na vida, em que alguns acabam
 adaptando-se a essas imagens enganosas, despersonalizando-se
 num segundo”eu”.Que pode uma alma, ainda por cima invisível,
 contra o testemunho de milhares de espelhos?
 Eis aqui um grave assunto para um conto, uma novela, um romance,
 ou uma tese de mestrado em Psicologia.”

Mario Quintana
In: Na Volta da Esquina (1979)

quinta-feira, 6 de março de 2014

A Canção



Era a flor da morte
E era uma canção...

Tão linda que só se poderia ler dançando

E que nada dizia
Em sua graça ingênua
Dos subterrâneos êxtases e horrores em que estavam
mergulhadas as suas raízes...
Mas estava fragilmente pintada sobre o véu do silêncio

Onde a morta jazia com os seus cabelos esparsos
Com os seus dedos sem anéis
Com os seus lábios imóveis

E que talvez houvessem desaprendido para sempre até
as sílabas com que outrora
pronunciavam meu nome...
Onde a morta jazia, na sua misteriosa ingratidão!

Era uma pobre canção,
Ingênua e frágil,
Que nada dizia...


Mario Quintana
in : O aprendiz de Feiticeiro

Mundo




E eis que naquele dia a folhinha marcava uma data em
 caracteres desconhecidos,
Uma data ilegível e maravilhosa.

Quem viria bater à minha porta?

Ai, agora era um outro dançar, outros os sonhos
e incertezas,

Outro amar sob estranhos zodíacos...

Outro...

E o terror de construir mitologias novas!


Mario Quintana;
in O Aprendiz de Feiticeiro

NOTURNO



Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis
que fazem os caminhos...

Em Deus, em ti, de novo...

Tua ternura tão simples...

Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço
pela noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto
junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água
límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca
de um arroio!


Mário Quintana
in O Aprendiz de Feiticeiro

quarta-feira, 5 de março de 2014

SIMULTANEIDADE





- Eu amo o mundo! 
 Eu detesto o mundo!
 Eu creio em Deus!
 Deus é um absurdo!
 Eu vou me matar!
 Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.


Mario Quintana
in A vaca e o hipogrifo




HOMO INSAPIENS



Vocês se lembram de quando a gente se perdia no
Campo e soltava a rédea do cavalo e ele voltava direi-
tinho para a casa? Pois até hoje, quando não me lembro
De onde guardei uma coisa, desisto de quebrar a cabeça,
Afrouxo o espírito e eis que ele conduz meu passo e minha
Mão sonâmbula ao lugar exato. Quando a saber dos dois,
Espíritos. Só sei que isso não me acontece agora na vastidão
do campo, mas dentro de uma casa, de sala, de um móvel...

Mario Quintana
in A vaca e o hipogrifo

domingo, 2 de março de 2014

O MAPA




Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo..


(E nem que fosse o meu corpo!)


Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...


Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moca bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)


Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)


E talvez de meu repouso...


Mario Quintana,
in: Apontamentos de História Sobrenatural, 1976.

XVIII



Esses inquietos ventos andarilhos
Passam e dizem: "Vamos caminhar.
Nós conhecemos misteriosos trilhos,
Bosques antigos onde é bom cismar...

E há tantas virgens a sonhar idílios!
E tu não vieste, sob a paz lunar,
Beijar os seus entrefechados cílios
E as dolorosas bocas a ofegar..."

Os ventos vêm e batem-me à janela:
"A tua vida, que fizeste dela?"
E chega a morte: "Anda! Vem dormir...

Faz tanto frio... E é tão macia a cama..."
Mas toda a longa noite inda hei de ouvir
A inquieta voz dos ventos que me chama!...


Mario Quintana
in a Rua dos Cataventos

sábado, 1 de março de 2014

Paisagem de após-chuva




A relva, os cavalos, as reses, as folhas,
tudo envernizadinho como no dia inolvidável
da inauguração do paraíso...

Mario Quintana,
in Sapato Florido

 

A surpresa de ser




A  florzinha
Crescendo
Subia
Subia
Direito
Pro céu
Como na história de Joãozinho e o Pé de Feijão.
Joãozinho era eu
Na relva estendido
Atento ao mistério das formigas que trabalhavam tanto...
E as nuvens, no alto, pasmadas, olhavam...
E as torres, imóveis de espanto, entre voos ariscos
Olhavam, olhavam...
E a água do arroio arregalava bolhas atônitas
Em torno de cada pedra que encontrava...
Porque todas as coisas que estavam dentro do balão
azul daquela hora
Eram curiosas e ingênuas como a flor que nascia
E cheias do tímido encantamento de se encontrarem juntas,
Olhando-se...

Mario Quintana,
in Nariz de Vidro