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sábado, 31 de maio de 2014

Ritmo



Na porta 
a varredeira varre o cisco 
varre o cisco 
varre o cisco

Na pia
a menininha escova os dentes 
escova os dentes 
escova os dentes

No arroio 
a lavadeira bate a roupa 
bate a roupa 
bate a roupa

até que enfim
se desenrola
toda a corda
e o mundo gira imóvel como um pião!

Mario Quintana,
in Antologia Poética



sexta-feira, 30 de maio de 2014

NOTURNO



Não sei por que, sorri de repente
E um gosto de estrela me veio na boca...
Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis
que fazem os caminhos...

Em Deus, em ti, de novo...

Tua ternura tão simples...

Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço
pela noite imensa
E o vento da madrugada me encontraria morto 
junto de um arroio,
Com os cabelos e a fronte mergulhados na água
límpida...
Mergulhados na água límpida, cantante e fresca
de um arroio!


Mário Quintana
in O aprendiz de feiticeiro

quinta-feira, 29 de maio de 2014

AS COISAS



O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
e, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- Essas coisas que parece 
não terem beleza
nenhuma
- é simplesmente porque 
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!


Mario Quintana 
- In A cor do invisível

quarta-feira, 28 de maio de 2014

PARECE UM SONHO



Parece um sonho que ela tenha morrido!"
Diziam todos… Sua viva imagem
Tinha carne!… E ouvia-se, na aragem,
Passar o frêmito do seu vestido.

E era como se ela houvesse partido
E logo fosse regressar de viagem…
- Até que o nosso coração dorido
A Dor cravava o seu punhal selvagem!

Mas tua imagem, nosso amor, é agora
Menos dos olhos, mais do coração.
Nossa saudade te sorri: não chora…

Mais perto estás de Deus, como um anjo querido.
E ao relembrar-te a gente diz, então:

"Parece um sonho que ela tenha vivido!"

Mario Quintana,
in Baú de Espantos

segunda-feira, 26 de maio de 2014

OUTONO


O outono de azulejo e porcelana
Chegou! Minha janela é um céu aberto.
É esse estado de graça quotidiana 
Ninguém o tem sob outros céus, decerto!
Agora, tudo transluz... tanto mais perto
Quanto mais nossa vista se alontana
E o morro, além, no seu perfil tão certo,
Até parece em plena via urbana!
Tuas tristezas... o que é feito delas?
Tombaram, como as folhas amarelas
Sobre os tanques azuis... Que desaponto!
E agora, esse cartaz na alma da gente:
ADIADOS OS SUICÍDIOS... Simplesmente
Porque é abril em Porto Alegre... E pronto!

Mario Quintana
In: Preparativos de Viagem


domingo, 25 de maio de 2014

FORMATAÇÃO DE LUCAS SAMPSON


FORMATAÇÃO DE LUCAS SAMPSON


FORMATAÇÃO DE REGINA HELENA


FORMATAÇÃO DE REGINA HELENA


FORMATAÇÃO DE REGINA HELENA


FORMATAÇÃO DE REGINA HELENA


Formatação de Regina Helena


sexta-feira, 23 de maio de 2014

CUIDADO!



Nós somos gestantes da alma... Cuidado!
É preciso muito, muito cuidado
Para que a alma possa nascer normal na outra vida.
Nesta, ela mal pode, ela quase não tem tempo de ficar pronta!
Como é possível, com esses cuidados e mais cuidados sem conta,
Ah, toda essa vergonha de sermos devorados
- meticulosamente - por milhões de ratos
durante sessenta, setenta, oitenta anos
Quando bem poderia surgir de súbito o nobre leão da morte
Na plenitude nossa
Como acontece com os heróis da Ilíada,
Mas os heróis só morrem - No País da Ilíada -
Belos e jovens...
Aqui, qualquer heroísmo se desmoraliza dia a dia
como a barba do tempo arrancada, fio a fio,
das folhinhas...
Como é possível, como é possível uma alma triturada
assim pelos relógios?
Como é possível nascer com um barulho destes?!

Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Canção da Aia Para o Filho do Rei



Mandei pregar as estrelas
Para velarem teu sono.
Teus suspiros são barquinhos
Que me levam para longe...
Me perdi no céu azul
E tu, dormindo, sorrias.
Despetalei uma estrela
Para ver se me querias...
Aonde irão os barquinhos?
Com que serás que tu sonhas!
Os remos mal batem n’água...
Minhas mãos dormem na sombra.
A quem será que sorris?
Dorme quieto, meu reizinho
Há dragões na noite imensa,
Há emboscadas nos caminhos...
Despetalei as estrelas,
Apaguei as luzes todas.
Só o luar te banha o rosto
E tu sorris no teu sonho.
Ergues o braço nuzinho,
Quase me tocas... A medo
Eu começo a acariciar-te
Com a sombra de meus dedos...
Dorme quieto, meu reizinho.
Os dragões, com a boca enorme,
Estão comendo os sapatos
Dos meninos que não dormem...


Mario Quintana,
in Canções





















quarta-feira, 21 de maio de 2014

PEQUENO POEMA DIDÁTICO



Para Liane dos Santos

O tempo é indivisível. Diz,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vario.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

E todos os encontros são adeuses!

Mario Quintana, 
in Apontamentos de História Sobrenatural




Janela de Abril



Tudo tão nítido! O céu rentinho às pedras.
Pode-se enxergar até os nomes que andaram
traçando a carvão naquele muro. Mas, mesmo
que o céu soubesse ler, isso não teria 
agora a mínima importância. E sente-se que
Nosso Senhor, em comemoração de abril,
instituirá hoje valiosos prêmios para o
riso mais despreocupado, para o sapato
mais rinchador, para a pandorga mais
alta sobre o morro.

Mario Quintana,
in Sapato Florido 1948

terça-feira, 20 de maio de 2014

O PASSEIO



...mas não vi o crepúsculo - onde aqueles
crepúsculos de Porto Alegre, de uma beleza
pungente até o grito?

 -Sim, cadê o crepúsculo?

 -O gato comeu?

O gato se chama hoje arranha-céu, que aliás,
ao que parece, ninguém mais chama desse jeito.
Esvaziou-se o espanto.

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho


DAS VIAGENS


O encanto de viajar está na própria viagem.
A partida e a chegada são meras interrupções
num velho sonho atávico de nomadismo.
Por outro lado, dizem todas as religiões 
que estamos apenas de passagem no mundo.
E isto é que faz querermos tanto a esta
vida passageira.

Mario Quintana ,
in Da preguiça como método de trabalho




segunda-feira, 19 de maio de 2014

Poema transitório



Eu que nasci na Era da Fumaça: - trenzinho
vagaroso com vagarosas
paradas
em cada estaçãozinha pobre
para comprar
pastéis
pés-de-moleque
sonhos
principalmente sonhos!
porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
elas suspirando maravilhosas viagens
e a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
sempre... Nisto,
o apito da locomotiva
e o trem se afastando
e o trem arquejando
é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é
urgente!
no entanto
eu gostava era mesmo de partir...
e - até hoje - quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma...
viajar indefinidamente...
como uma nave espacial perdida entre as estrelas


Mario Quintana,
in Baú de Espantos

domingo, 18 de maio de 2014

Magias



Conheço uma cidade azul.
Conheço uma cidade cor de ferrugem.
Na primeira, há helicópteros pairando...
Na segunda, espiam de seus esconderijos os olhos das
ratazanas...
No entanto
é a mesma cidade
e,
onde a gente estiver,
será sempre uma alma extraviada em labirintos
escusos
ou, então,
uma alma perdida de amor...
Sim! por ser habitado por almas
é que este nosso mundo é um mundo mágico...
onde cada coisa - a cada passo que se der
vai mudando de aspecto...
de forma...
de cor...
Vai mudando de alma!

Mario Quintana,
in Baú de Espantos





Os poemas



Poemas nas pontas dos pés.
que nem os sente o papel...

Poemas de assombração
sumindo
pelos desvãos da alma...
Poemas que dançam,

rindo
que nem crianças...

Poemas de pé de pilão,
um baque
no coração.

E aqueles que desmoronam
- lentamente -
sobre um caixão!


Mario Quintana,
in Baú de Espantos


Era um lugar



Era um lugar em que Deus ainda acreditava na gente...
Verdade
que se ia à missa quase só para namorar
mas tão inocentemente
que não passava de um jeito, um tanto diferente,
de rezar
enquanto, do púlpito, o padre clamava possesso
contra pecados enormes.
Meu Deus. até o Diabo envergonhava-se.
Afinal de contas, não se estava em nenhuma
Babilônia...
Era, tão só, uma cidade pequena,
com seus pequenos vícios e suas pequenas virtudes:
um verdadeiro descanso para a milícia dos Anjos com
suas espadas de fogo.
- um amor!
Agora, aquela antiga cidadezinha está dormindo para
sempre
em sua redoma azul, em um dos museus do Céu.


Mario Quintana,
in Baú de Espantos






O pobre poema



Eu escrevi um poema horrível!
É claro que ele queria dizer alguma coisa...
Mas o quê?
Estaria engasgado?
Nas suas meias-palavras havia no entanto uma ternura
mansa como a que se vê nos olhos de uma criança
doente, uma precoce, incompreensível gravidade
de quem, sem ler os jornais,
soubesse dos seqüestros
dos que morrem sem culpa
dos que se desviam porque todos os caminhos estão
tomados...
Poema, menininho condenado,
bem se via que ele não era deste mundo
nem para este mundo...
Tomado, então, de um ódio insensato,
esse ódio que enlouquece os homens ante a
insuportável
verdade, dilacerei-o em mil pedaços.
E respirei...
Também! quem mandou ter ele nascido no mundo
errado?


Mario Quintana,
in Baú de Espantos

sábado, 17 de maio de 2014

Pequena crônica policial



Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grande beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...

Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldta sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

Mario Quintana,
in Canções
(1906-1994)

LXXVI Da discrição



Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo de teu amigo
Possui amigos também...

Mario Quintana
In: Espelho Mágico

sexta-feira, 16 de maio de 2014

CANÇÃO DE BALLET




Ele sozinho passeia
Em seu palácio invisível.
Linda moça risca um riso

Por trás do muro de vidro.

Risca e foge, num adejo.
Ele pára, de alma tonta.
Um beijo brota na ponta
Do galho do seu desejo.

E pouco a pouco se achegam.
Põem a palma contra a palma.
Mas o frio, o frio do vidro

Lhe penetra a própria alma!

"Ai do meu Reino Encantado,
Se tudo aqui é impossível...
Pra que palácio invisível
Se o mundo está do outro lado?"

E inda busca, de alma louca,
Aquele lábio vermelho.
Ai, o frio da própria boca!

O amor é um beijo no espelho?

Beija e cai, como um engonço,
Todo desarticulado?
Linda moça, como um sonho,
Se dissipa do outro lado?


Mario Quintana 
In Canções


Extra Terrena



Extra Terrena 
(Para Cecília Meirelles)


Nós colhíamos flores de hastes muito longas
E cujos nomes nem ao menos conhecíamos…
E nem sequer, também, sabíamos os nossos nomes…
E para quê, se um para o outro éramos Tu, apenas…
Ou quem sabe a Morte nos houvera bordado
numa tapeçaria
A que o vento emprestasse a vida por um momento?
E por isso os nossos gestos eram ondulantes como
as plantas marinhas
E as nossas palavras como asas suspensas no vento…

 
Mario Quintana
In: Preparativos de Viagem

quarta-feira, 14 de maio de 2014

INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA



A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...


Mário Quintana
in  Antologia Poética

terça-feira, 13 de maio de 2014

Da vez primeira em que me assassinaram



Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Mario Quintana
In: A rua dos cataventos

PREPARATIVOS PARA A VIAGEM



Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
-a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face
do Senhor...

os próprios Anjos te invejarão.



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

segunda-feira, 12 de maio de 2014

XXXI




É outono. E é Verlaine... O Velho Outono
Ou o Velho Poeta atira-me à janela
Uma das muitas folhas amarelas
De que ele é o dispersivo dono...

E há uns salgueiros a pender de sono
Sobre um fundo de pálida aquarela.
E há (está previsto) este abandono...
Ó velhas rimas! É acabar com elas!

Mas o Outono apanha-as... E, sutil,
Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil,
Toca de novo o seu fatal motivo:

Um quê de melancólico e solene
— E para todo o sempre evocativo —
Na frauta enferrujada de Verlaine... 


Mário Quintana ,
in A Rua dos Cataventos


sábado, 10 de maio de 2014

MÃE



São três letras apenas,
As desse nome bendito:
Três letrinhas,nada mais...
E nelas cabe o infinito
E palavra tão pequena
-confessam mesmo os ateus-
És do tamanho do céu!
E apenas menor do que Deus...

Mario Quintana 
in Lili Inventa o Mundo

terça-feira, 6 de maio de 2014

CANÇÃO PARA DEPOIS



À maneira de Cecília

Quando esta pura voz que ouviste
Serenamente calar-se,
Como é que descobririas 
O seu disfarce?

Não digas palavras loucas
Em meus ouvidos de pedra!
Não busques na voz do vento
Minha resposta...

Silêncio! E, depois, afasta
O passo que se avizinha...
Que ninguém veja esta face
Que não é minha!


Mario Quintana
In Apontamentos da História Sobrenatural

segunda-feira, 5 de maio de 2014

POEMINHA SENTIMENTAL




O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

Mario Quintana
In Preparativos de Viagem

domingo, 4 de maio de 2014

OS RETRATOS



O pior dos nossos retratos é que vão ficando cada dia
mais jovens. 

E chega um dia em que parecem nossos filhos...

E a gente os olha comovidamente, como se houvesse 
morrido há muito, em plena mocidade.
Os pobres-diabos!


Mario Quintana,
in Da Preguiça como método de trabalho



sábado, 3 de maio de 2014

BEBÊ



Coisinha deficiente, inconsciente,
inerme, inválida, trabalhosa,
querida.

Mario Quintana,
in Caderno H


Passarinho Empalhado



Quem te empoleira lá no alto
do chapéu do contravó,
tico-tico surubico?
Tão triste... tão feio... tão só?
Meu tico-tiquinho coberto de pó...
E tu que querias fazer o teu ninho
na máquina do Giovanni fotógrafo!


Mario Quintana
In Nariz de vidro

quinta-feira, 1 de maio de 2014

FAMÍLIA DESENCONTRADA



O Verão é um senhor gordo, 
Sentado na varanda,
Suando em bicas
E reclamando cerveja

O Outono é um tio solteirão
Que mora lá em cima do sótão
E a toda hora protesta aos gritos:
“Que barulho é este na escada?”

O Inverno é o vovozinho trêmulo
Com a boina enterrada até os olhos, 
A manta enrolada nos queixos
E sempre resmungando:
“Eu não passo deste agosto, eu não passo deste agosto....”

A Primavera, em contrapartida
É ela quem salva a honra da família!
É uma menininha pulando na corda,cabelos ao vento
Pulando cantando debaixo da chuva
Curtindo o frescor da chuva
que desce do céu
O cheiro de terra que sobe do chão
O tapa do vento na cara molhada!

Oh!
A alegria do vento desgrenhando as árvores
Revirando os pobres guarda-chuvas
Erguendo saias

A alegria da chuva a cantar nas vidraças
Sob as vaias do vento...

Enquanto
Desafiando o vento, a chuva, desafiando tudo
No meio da praça
A menininha canta 
a alegria da vida
A alegria da vida!


Mario Quintana
In Baú de Espantos


LUNAR



As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...

E que importa se uns nossos artefactos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar ...

E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.

Não tanto...Alguém me há de ler com um meio sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel...E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo...

Mario Quintana
In 'Apontamentos de História Sobrenatural'

O cágado




Morava no fundo do poço.
E nunca saiu do poço.

Costumava tormar sol numa saliência da parede,
quando a água chegava até ali.
Nas raras vezes que isto sucedia, ficávamos a olhá-lo
impressionados, como se estivéssemos diante do
Homem da Máscara de Ferro.


Que vida!
Era o único bicho da casa que não sabia os nossos
nomes, nem das mudanças de cozinheiras, nem o
dia dos anos de Lili.

Não sabia nem queria saber.


Mario Quintana
In 'Sapato Florido' (1948])