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quinta-feira, 31 de julho de 2014

SOLAU À MODA ANTIGA



Senhora, eu vos amo tanto
Que até por vosso marido
Me dá um certo quebranto...

Pois que tem que a gente inclua
No mesmo alastrante amor
Pessoa, animal ou coisa.
Ou seja lá o que for,
Só porque os banha o esplendor
Daquela a quem se ama tanto?
E sendo desta maneira
Não me culpeis, por favor,
Da chama que ardente abrasa
O nome de vossa rua,
Vossa gente, vossa casa.

E vossa linda macieira
Que ainda ontem deu flor...


Mario Quintana,
in Esconderijos do Tempo


DOGMA E RITUAL



Os dogmas assustam como trovões
e que medo de errar a sequência dos ritos!
Em compensação,
Deus é mais simples do que as religiões.
 
Mario Quintana
In Apontamentos da História Sobrenatural 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Inquietude




Esse olhar inquisitivo que me dirige às vezes nosso próprio cão...
Que quer ele saber que eu não sei responder?
Sou desse jeito... Vivo cercado de interrogações.
Dinheiro que eu tenha, como vou gastá-lo?
E como fazer para que não me esqueças?
(ou eu não te esqueça...)
Sinto-me assim, sem motivo algum,
Como alguém que estivesse comendo uma empada de camarão sem
camarões
Num velório sem defunto...

- Mario Quintana, 
in: Velório sem defunto, 1990..

terça-feira, 29 de julho de 2014

XVII




Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


Mário Quintana
in A rua dos Cataventos

domingo, 27 de julho de 2014

Do CONHECIMENTO




Tudo já está nas enciclopédias e todas dizem as
mesmas coisas. Nenhuma delas nos pode dar uma 
visão inédita do mundo. Por isso é que leio os
poetas. Só com os poetas se pode aprender 
algo novo.

Mario Quintana 
Caderno H

Ao longo das janelas mortas



Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrivel!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos, Nosso
Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho...

Mário Quintana,
in 80 Anos de Poesia

sábado, 26 de julho de 2014

E AS HORAS LÁ SE VÃO...



E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes!

Mário Quintana
 - '80 anos de poesia'




Canção de vidro




E nada vibrou...
Não se ouviu nada...
Nada...

Mas o cristal nunca mais deu o mesmo som.

Cala, amigo...
Cuidado, amiga...
Uma palavra só
Pode tudo perder para sempre...

E é tão puro o silêncio agora!

Mário Quintana
 - '80 anos de poesia'

quinta-feira, 24 de julho de 2014

RECORDO AINDA



Recordo ainda… e nada mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta…
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança…
Estrada afora após segui… Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino… acreditai!…
Que envelheceu, um dia, de repente!… 


Mario Quintana,
in Nariz de Vidro

terça-feira, 22 de julho de 2014

''I''



Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!

Mário Quintana
in 'A RUA DOS CATAVENTOS'



sábado, 19 de julho de 2014

O DEIXADOR



Eu tenho mania de deixar tudo para depois...
Depois a contagem das cartas a responder...
Depois a arrumação das coisas...
Depois, Adalgisa... Ah,
Me lembrar mais uma vez de romper definitivamente com Adalgisa!
Depois, tanta, tanta coisa...
Depois o testamento as últimas vontades a morte.
Só porque vai sempre deixando tudo para depois
É que Deus é eterno
E o mundo incompleto
Inquieto...
Só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!

Mario Quintana 
Baú de Espantos

Quem seríamos?



Veio um instante, partiu de novo,
Leve, sem nome...
Para que nomes? Era azul e voava...
No véu das horas punha o seu motivo.
Partiu. E nem
Ficou sabendo
Como eu, acaso, me chamava...

Mario Quintana ,
in Apontamentos de história sobrenatural,



quinta-feira, 17 de julho de 2014

II




     Dorme ruazinha... É tudo escuro...
     E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
     Dorme o teu sono sossegado e puro
    Com teus lampiões, com teu jardins tranquilos...

    Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
    Nem guardas para acaso persegui-los...
    Na noite alta, como sobre o muro,
    As estrelinhas cantam como grilos...

    O vento está dormindo na calçada,
    O vento enovelou-se como um cão...
    Dorme ruazinha... Não há nada...

    Só os meus passos... Mas tão leves são
    Que até parecem pela madrugada,
    Os da minha futura assombração... 


Mario Quintana,
in Rua dos Cataventos


quarta-feira, 16 de julho de 2014

A ALMA E O BAÚ



Tu que tão sentida e repetida e voluptuosamente
te entristeces e adoeces de ti,
é preciso rasgar essas vestes de dó,
as penas é preciso raspar com um caco , uma 
por uma: são
crostas...
E sobre a carne viva
nenhuma ternura sopre.
Que ninguém acorra.
Ninguém, biblicamente, com os seus bálsamos e olores...
Ah, tu com as tuas cousas e lousas, teus badulaques,
teus ais ornamentais, tuas rimas,
esses guizos de louco...
A tua alma (tua?) olha-te simplesmente.
Alheia e fiel como um espelho.
Por supremo pudor, despe-te, despe-te, quanto mais
nu mais tu,
despoja-te mais e mais.
Até a invisibilidade.
Até que fiquem só espelho contra espelho
num puro amor isento de qualquer imagem.
- Mestre, diz-me... e isso tudo valerá acaso a perda
de meu baú.


Mario Quintana
in Apontamentos de História Sobrenatural



terça-feira, 15 de julho de 2014

O AUTORRETRATO



No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

- Mario Quintana,
 in: Apontamentos de História Sobrenatural, 1976.


sexta-feira, 11 de julho de 2014

UMA FRASE PARA ÁLBUM


 
" Há ilusões perdidas  mas  tão lindas que a gente as vê 
partir  como esses balõezinhos  de cor que nos
escapam das  mãos  e desaparecem no céu ..."
 
Mario Quintana , 
in   " A vaca e o Hipogrifo "


quinta-feira, 10 de julho de 2014

DE UMA ENTREVISTA PARA O BOLETIM DO INBA



 Não pretendo que a poesia seja
um antídoto para a tecnocracia atual.
Mas sim um alívio.
Como quem se livra de vez em quando
de um sapato apertado e passeia descalço
sobre a relva, ficando assim mais próximo
da natureza, mais por dentro da vida.
Porque as máquinas um dia viram sucata.
A poesia, nunca.
 
Mario Quintana,
in A Vaca e o Hipogrifo


PERGUNTA INOCENTE



Mas se as bruxas tem tantos poderes,
porque serão tão velhas, tão feias,
tão pobres, tão sujas?

Mario Quintana,
in Porta Giratória

O MAPA


Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...

- Mario Quintana,
in: Apontamentos de História Sobrenatural,

terça-feira, 8 de julho de 2014

NOSTALGIA



A vista de um veleiro em alto mar
remoça a gente no mínimo
uns cento e cinquenta anos.

Mario Quintana,
in Caderno H


Pudor



Se a tua vida não puder ser uma tragédia grega 
- por amor de Deus!
 - não a faças um tango argentino...

Mario Quintana
Caderno H

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Confissão



Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!

- Mario Quintana,
 in: Velório sem defunto, 1990.

domingo, 6 de julho de 2014

QUEM BATE?



Cecília.Cecília que chega de um pátio da infância...
Traz ainda sereno nas tranças, seus sapatinhos andaram
pulando na grama...Depois assenta-se nos degraus da
torre, e canta...
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe as tranças, teceu
cordoalhas para o seu navio.Mas o chaveiro do sonho
pegou-lhe a canção...E fez um vento longo e triste.
E eu pensava que toda a minha tristeza vinha apenas
do vento, da solidão do mar, da incerteza daquela
viagem num navio perdido.

Mario Quintana
In Sapato Florido

sábado, 5 de julho de 2014

IV



Minha rua está cheia de pregões,
Parece que estou vendo com os ouvidos:
"Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!
Eu vou sair pro carnaval dos ruídos,

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mão em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches atrevidos!

Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.

Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista... Não,
Meu pobre Anjo... É simplesmente a vida!


Mario Quintana,
in Rua dos Cataventos

A ÁRVORE DOS POEMAS



Quando a árvore dos poemas não dá poemas, 
Seus galhos se contorcem todos como mãos de enterrados vivos, 
Os galhos desnudos, ressecos, sem o perdão de Deus! 
E, depois, meu Deus, essa lenta procissão de almas retirantes... 
De vez em quando uma tomba, exausta à beira do caminho, 
Porque ninguém lhe chega ao lábio o frescor de cântaro, 
a doçura de fruto que poderia haver num poema. 
Maldita a geração sem poetas que deixa as almas seguirem 
seguirem como animais em estúpida migração! 
Quando a árvore dos poemas não dá poemas, 
Qual será o destino das almas?

Mario Quintana
In: Baú de espantos


quinta-feira, 3 de julho de 2014

VIDA




Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Ah! Se exigirem documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas 
de um álbum de imagens:

aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida...

Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!


Mario Quintana,
in Esconderijos do tempo


FUNÇÃO



Me deixaram sozinho no meio do circo
Ou era apenas um pátio uma janela uma rua
uma esquina

Pequenino mundo sem rumo


Até que descobri que todos os meus gestos
Pendiam cada um das estrelas por longos fios invisíveis

E havia súbitas e lindas aparições como aquela das
longas tranças
E todas imitavam tão bem a vida
Que por um momento se chegava a esquecer a sua
cruel inocência do bonecas


E eu dizia depois coisas tão lindas 
E tristes
Que não sabia como tinham ido parar em minha boca


E o mais triste não era que aquilo fosse apenas um
jogo cambiante de reflexos


Porque afinal um belo pião dançante
Ou zunindo imóvel
Vive uma vida mais intensa do que a mão ignorada
que o arremessou


E eu danço, tu danças e nós dançamos
Sempre dentro de um círculo implacável de luz 
Sem saber quem nos olha atenta ou distraidamente
do escuro...

Mario Quintana 
in: Apontamentos de História Sobrenatural

quarta-feira, 2 de julho de 2014

CANÇÃO DE INVERNO



“Pinhão quentinho!
Quentinho o pinhão!”
(E tu bem juntinho
Do meu coração. . .) 

Mário Quintana
In: Canções

terça-feira, 1 de julho de 2014

A CASA GRANDE



...mas eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água
com o telhado descendo logo após as fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(...escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje 
-mesmo depois que destruíram a casa grande –
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos... 


Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

Cuidado



A poesia não se entrega a quem a define.

- Mario Quintana,
in: Caderno H,

POEMINHO SENTIMENTAL



O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

Mario Quintana
Preparativos de Viagem, 1987