Seja bem-vindo. Hoje é

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

ENCONTRO



Era uma dessas mulheres que não se usam mais.
Vestes de trevas e vidrilhos.
Cabeleira trágica.
Olheiras suspeitas.
O grito horizontal da boca.
Surgiu da noite.
Sumiu pela última porta do poema.



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AS CIDADES PEQUENAS


As moças das cidades pequenas
com o seu sorriso e o estampado claro de seus vestidos
são a própria vida. Elas
é que alvorotam a praça. Por elas
é que os sinos festivamente batem, aos domingos.
Por elas, e não para a missa!... Mas Deus não se importa...
Afinal, 
só nessas cidadezinhas humildes
é que ainda o chamam de Deus Nosso Senhor... 


Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


O MORCEGO



Um morcego enormíssimo escureceu metade da cidade
-uma nuvem negra, imóvel.
Tivemos de as procurar às pressas e ir acendendo as velas
com mãos trêmulas como se as erguêssemos diante de oratórios.
E diante delas as nossas tataravós ajoelham-se penosamente,
babando misereres.
Súbito, restabeleceu-se a eletricidade, desmoralizando a 
anemia das velas.
Das tataravós, nem sombra!
Elas agora devem estar rezando em qualquer um desses
mundos por aí, diante de algum outro falso fim-do-mundo. 



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A LUA DE BABILÔNIA



Numa esquina do Labirinto
às vezes
avista-se a Lua.
“Não! como é possível uma lua subterrânea?”

(Mas cada um diz baixinho:
Deus te abençoe, visão...)



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


O BAÚ



Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,

uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino

te traz de súbito uma idéia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

AH, MUNDO...



Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
-rotos e felizes! –
por essas estradas do mundo. 


Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

domingo, 24 de agosto de 2014

VIAGEM ANTIGA




Aqui e ali
reses pastando imóveis
como num presépio

a mata ocultando o xixi das fontes

uma cidadezinha de nariz pontudo
furava o céu 

depois sumia-se lentamente numa curva

e a gente olhava olhava
sem nenhuma pressa
porque o destino daquelas nossas primeiras viagens
era sempre o horizonte



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

FRUSTRAÇÃO




Outono: essas folhas que tombam na água parada
dos tanques e não podem sair viajando pelas 
correntezas do mundo...

Mario Quintana,
in Caderno H

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

XXI Das ilusões



Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alivio!  


Mario Quintana
In: Espelho Mágico


X Da vida ascética



Não foge ao mundo o verdadeiro asceta,
Pois em si mesmo tem seu próprio asilo.
E em meio à humana turba, arrebatada e inquieta,
Só ele é simples e tranqüilo.


Mario Quintana
In: Espelho Mágico

VIII Dos mundos



Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo. 


Mario Quintana
In: Espelho Mágico

VII Da voluptuosidade


Tudo, mesmo a velhice, mesmo a doença,
Tudo comporta o seu prazer...
E até o pobre moribundo pensa
Na maneira mais suave de morrer... 



Mario Quintana
In: Espelho Mágico

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

TALVEZ



Repara como o poeta humaniza as coisas:
dá hesitações às folhas, anseios ao vento.
Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens.

Mario Quintana,
in Caderno H


A ESTRANHA VERDADE




Tudo pode sair muito mais bonito nas fotografias,
mas sai muito mais verdadeiro nas pinturas.

Mario Quintana,
in Caderno H


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O SONO



O sono é uma viagem noturna.
O corpo – horizontal – no escuro
E no silêncio do trem avança.
Imperceptivelmente
Avança. Apenas
O relógio picota a passagem do trem.
Sonha a alma deitada em seu ataúde:
Lá longe
Lá fora
(Ela sabe!)
Lá no fundo do túnel
Há uma estação de chegada
- anunciam-na os galos, agora – 
Com a sua tabuleta ainda toda úmida de orvalho,
Há uma estação chamada
AURORA.

Mario Quintana
in: Preparativos de Viagem


terça-feira, 12 de agosto de 2014

A CANÇÃO DA VIDA




A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...

(Como a vida é bela! como a vida é louca!)


Mario Quintana
Esconderijos do Tempo







domingo, 10 de agosto de 2014

AS MÃOS DE MEU PAI



As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
- como são belas as tuas mãos 
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre
cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza 
que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços 
da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los 
contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das 
tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura das tuas mãos
nodosas…
essa chama de vida – que transcende a própria vida
…e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.


- Mario Quintana, 
in: Esconderijos do tempo

domingo, 3 de agosto de 2014

Jardim interior



Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos.
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

Mario Quintana , 
in A Cor do Invisível, 1989

Pedra Rolada



 
Esta pedra que apanhaste acaso à beira do caminho
- tão lisa de tanto rolar -
é macia como um animal que se finge de morto.

Apalpa-a... E sentirás, miraculosamente,
a suave serenidade com que os mortos recordam.

Mortos?! Basta-lhes ter vivido
um pouco
para jamais poderem estar mortos

- e esta pedra pertence ao universo deles,


Deposita-a
no chão, 
cuidadosamente...

Esta pedra está viva!


Mario Quintana, 
in Apontamentos de Historia sobrenatural