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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Tudo tão vago...



Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormia... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!...


Mario Quintana,
in A Rua dos Cataventos

VERSO AVULSO



Senhor! Que buscas Tu pescar com a rede
das estrelas?

Mario Quintana,
in 80 anos de Poesia


Canção



Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.

Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.

Uma havia
que dentre as outras mais graves

tão clara e alta se erguia...

Que eu custei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.

Meu Deus, as coisas que ele dizia!
as coisas que perguntava!

Eu deixei-as sem resposta.

Mario Quintana,
in 80 anos de Poesia


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O LIVRO DA VIDA




Comparar a vida com um livro é uma das
imagens mais batidas. Que importa?
Novidade não é documento.
Mas que ansiosa leitura, que suspense.
Por que pode terminar sem mais nem menos,
às vezes em meio de um capítulo, de uma frase...
e, assim, a gente tem que saborear linha por linha,
minha filha, para fazê-lo render o mais possível:
nada de leitura dinâmica.

Mario Quintana
In: PREPARATIVOS DE VIAGEM

O PIOR

O pior dos problemas da gente é
que ninguém tem nada com isso.

Mario Quintana ,
in Caderno H

domingo, 15 de dezembro de 2013

'Dois Versos para Greta'




O teu sorriso é imemorial como as Pirâmides
E puro como a flor que abriu na manhã de hoje...


Mario Quintana
Apontamentos de História Sobrenatural-1976

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

BOLA DE CRISTAL



A praça, o coreto, o quiosque,
as primeiras leituras, os primeiros
versos
e aquelas paixões sem fim...
Todo um mundo submerso,
com suas vozes, seus passos, seus silêncios
Deixo-te, pobre menino, aí sozinho...
Que bom que nunca me viste
como te estou vendo agora
— e é melhor que seja assim...
Deixo-te
com os teus sonhos de outrora, os teus livros queridos
e aquelas paixões sem fim!
e a praça... o coreto... o quiosque
onde compravas revistas...
Sonha, menino triste...
Sonha...
— só o teu sonho é que existe. 
MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Biografia


Era um grande nome — ora que dúvida!
Uma verdadeira glória.
Um dia adoeceu, morreu, virou rua...
E continuaram a pisar em cima dele.


Mario Quintana,
in Caderno H

LXXI. DAS PENAS DE AMOR


É só por teu egoísmo impenitente
Que o sentimento se transforma em dor.
O que julgas, assim, penas de amor,
São penas de amor-próprio, simplesmente...

Mario Quintana,
in Espelho Mágico







domingo, 8 de dezembro de 2013

XXX




Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio...
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram...esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então.
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
“Como é possível sem doutrinação?1”

Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
“Olha! É o Idiota desta Aldeia!” dizem...


Mario Quintana,
in: A Rua dos Cataventos


sábado, 7 de dezembro de 2013

JAZZ


 
Deixa subirem os sons agudos, os sons estrídulos do jazz no ar.
Deixa subirem: são repuxos: caem...
Apenas ficaram os arroios correndo sem rumor dentro da noite.
E junto a cada arroio, nos campos ermos,
Um Anjo de Pedra estará postado.

O Anjo de Pedra que está sempre imóvel por detrás de todas as coisas
Em meio aos salões de baile, entre o fragor das batalhas, nos comícios
das praças públicas
E em cujos olhos sem pupilas, brancos e parados,
Nada do mundo se reflete.


Mario Quintana
In:  O Aprendiz de feiticeiro

ROCK


O rock é o desespero,
Como se eles estivessem não apenas no fim de um século
Mas no fim do mundo e, por isso,
Berram em vez de cantar,
Pulam em vez de dançar,
Estupram-se em vez de simplesmente se amarem...
E fazem de tudo, tudo,
No seu suicídio coletivo!

Mario Quintana,
In: Velório Sem defunto

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

VERANICO



Está marcando meio-dia nos olhos dos gatos.
As sombras esconderam-se debaixo da barriga dos cavalos.
A cidadezinha modorreia...A tarde
Avança, lentamente, como o casco coberto de poeira
Como uma tartaruga
O poema empaca, o poeta adormece
De chatice
A vida continua indiferente.


Mario Quintana
in: Preparativos de Viagem


AEROPORTO


Eu também, eu também hei de estar no
Grande Aeroporto um dia,
Entre os outros viajantes sem bagagem...
Tu não imaginas como é bom, como é repousante
Não ter bagagem nenhuma!
Porém, no auto-falante,
Serei chamado por outro nome que não o meu...
Um nome conhecido apenas pelos anjos.
Mas eu reconhecerei o meu nome
Como reconheço no espelho a minha imagem de cada dia.
E cada chamada será uma súbita, uma maravilhosa revelação.
Menos
Para umas poucas criaturas...
Aquelas criaturas que mereceram ser conhecidas
Ainda neste mundo,
Ainda nesta vida
Pelo seu nome único e verdadeiro!

Mario Quintana
in: Preparativos de Viagem


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

SE O POETA FALAR NUM GATO


Se o poeta falar num gato, numa flor,
num vento que anda por descampados e desvios
e nunca chegou à cidade...
se falar numa esquina mal e mal iluminada...
numa antiga sacada... num jogo de dominó...
se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que
morriam de verdade...
se falar na mão decepada no meio de uma escada
de caracol...
Se não falar em nada
e disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poemas são de amor!

Mário Quintana

In: Esconderijos do Tempo

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

XX. DOS SOFRIMENTOS QUOTIDIANOS



Tricas... Nadinhas mil... Ridículos extremos...
Enxame atroz que em torno à gente esvoaça.
E disto, e só por isto envelhecemos...
Nem todos podem ter uma grande desgraça!


Mario Quintana,
in Espelho Mágico

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

CONTO DE TODAS AS CORES


 Eu já escrevi um conto azul, vários até.
 Mas este é um conto de todas as cores.
 Porque era uma vez um menino azul, uma menina verde,
 um negrinho dourado e um cachorro com todos os tons e
 entretons do arco-íris.
 Até que apareceu uma Comissão de Doutores, os quais,
 por mais que esfregassem os nossos quatro amigos,
 viram que não adiantava...
 E perguntaram se aquilo era de nascença ou se...
  - Mas nós não nascemos - interrompeu o cachorro.
- Nós fomos inventados!

Mario quintana,
in A Vaca e o Hipogrifo

ROMANCE SEM PALAVRAS



Há vidas, longas vidas que deixam em nossa lembrança-
não uma história mas um certo ar, um clima,
uma presença apenas.

Oh! aquelas velhas tias provincianas...
Vidas de uma harmonia tão sutil, tão simples e tão
lenta que nem se nota.

Como uma valsinha que alguém fosse tocando ao piano
espaçadamente com um dedo só...

Mario Quintana ,
in A vaca e o Hipogrifo


domingo, 1 de dezembro de 2013

O dia seguinte do amor



Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,

Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados...
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôo encantados!...

E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê...
Até os cegos, os entrevadinhos... E

Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cata-ventos!


Mario Quintana
In Nariz de Vidro

O adolescente




A vida é tão bela que chega a dar medo.
Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas
esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
As folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com o teu desejo!


Mario Quintana
In Nariz de vidro









sexta-feira, 29 de novembro de 2013

DIAGNÓSTICO ERRADO



Não tentes tirar uma idéia da cabeça de outrem porque,
examinando bem, verás que em geral não se trata de idéias,
mas de convicções. São inextirpáveis.
É a causa única de todas as guerras políticas ou religiosas,
paroquianas ou internacionais.

Mario Quintana ,
in A Vaca e o Hipogrifo

Os caminhos estão cheios de tentações


Os caminhos estão cheios de tentações.

Os nossos pés arrastam-se na areia lúbrica...

Oh! tomemos os barcos das nuvens!

Enfunemos as velas dos ventos!

Os nossos lábios tensos incomodam-nos como estranhas mordaças.

Vamos! vamos lançar no espaço - alto, cada vez mais alto! - a rede das estrelas...

Mas vem da terra, sobe da terra, insistente, pesado,

Um cheiro quente de cabelos...

A Esfinge mia como uma gata.

E o seu grito agudo agita a insônia dos adolescentes pálidos,

O sono febril das virgens nos seus leitos.

De que nos serve agora o Cristo do Corcovado?!

Há um longo, um arquejante frêmito nas palmeiras, em torno...

A Noite negra, demoradamente,

Aperta o mundo entre os seus joelhos.


Mario Quintana -
O Aprendiz de Feiticeiro, 1950

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

VENTO



Pastor das nuvens.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Melancolia



Maneira romântica de ficar triste.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987

INFÂNCIA




é quando as portas são fechadas
e abertas ao mesmo tempo,
é quando estamos metade na luz
e a outra metade na escuridão,
é quando o mundo real chama
e preferimos outro...

Mario Quintana
in Esconderijos do Tempo

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Linha Reta




Linha sem imaginação.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Linha Curva



O caminho mais agradável entre dois pontos.

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Verso Avulso



O luar é a luz do sol que está dormindo...

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987

O Eterno Espanto



Que haverá com a lua que sempre que a gente
a olha é com o súbito espanto da primeira vez?

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987


Do Amoroso Esquecimento


Eu agora, – que desfecho!
Já nem penso mais em ti…
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Mario Quintana,
in- Espelho Mágico






A GRANDE CATÁSTROFE


No princípio era o verbo. O verbo Ser.
 Conjugava-seapenas no infinitivo. Ser, e nada mais.
Intransitivo absoluto.
Isto foi no princípio. Depois transigiu, e muito.
Em vários modos, tempos e pessoas: eu, tu, ele, nós ,vós,
eles...
Principalmente eles!
E, ante essa dispersão lamentável, essa verdadeira explosão
do SER em seres, até hoje os anjos ingenuamente se
interrogam por que motivo as referidas pessoas chamam a
isso de CRIAÇÃO...


Mario Quintana
In Na Volta da Esquina














terça-feira, 26 de novembro de 2013

"O Vento e Eu"


O vento morria de tédio
porque apenas gostava de cantar
mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
cada vez mais vazia...
Tentei então compor-lhe uma canção
tão comprida como a minha vida
e com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
e fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
Mas o vento, por isso,
me julga agora como ele...
E me dedica um amor solidário, profundo!



Mario Quintana
de 'Velório sem Defunto'

[Tela by Dima Dmitriev]

CANÇÃO DE JUNTO DO BERÇO .



Não te movas,dorme,dorme
O teu sorriso tranquilo.
Não te movas (diz-lhe a Noite)
Que inda está cantando um grilo...
.
Abre os teus olhinhos de ouro
(O dia lhe diz baixinho).
É tempo de levantares
Que já canta um passarinho...
.
Sozinho, que pode um grilo
Quando já tudo é revoada?
E o Dia rouba o menino
No manto da madrugada...
.
Mario Quintana
In "Lili Inventa o Mundo"


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

LXXVIII. DA PREGUIÇA


Suave Preguiça, que do mal-querer
E de tolices mil ao abrigo nos pões...
Por causa tua, quantas más ações
Deixei de cometer!
 
Mario Quintana;
in Espelho Mágico

LXXXIII. DO MAL DA VELHICE




Chega a velhice um dia... E a gente ainda pensa
Que vive... E adora ainda mais a vida!
Como o enfermo que em vez de dar combate à doença
Busca torná-la ainda mais comprida...

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

LXXXVIII. DA RIQUEZA



O dinheiro não traz venturas, certamente.
Mas dá algum conforto... E em verdade te digo:
Sempre é melhor chorar junto à lareira quente
Do que na rua, ao desabrigo.

Mario Quintana;
in Espelho Mágico



domingo, 24 de novembro de 2013

CONFESSIONAL




Eu fui um menino por trás de uma vidraça - um menino
de aquário.
Via o mundo passar como numa tela cinematográfica,
mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas
personagens.
Tudo tão chato que o desenrolar da rua acabava me
parecendo apenas em preto-e-branco, como nos filmes
daquele tempo.
O colorido todo se refugiava, então, nas ilustrações
dos meus livros de histórias, com seus reis
hieráticos e belos como os das cartas de jogar.
E suas filhas nas torres altas - inacessíveis princesas.
Com seus cavalos uns verdadeiros príncipes na
elegância e na riqueza dos jaezes.
Seus bravos pajens (eu queria ser um deles...)
Porém, sobrevivi...
E aqui, do lado de fora, neste mundo em que vivo,
como tudo é diferente! Tudo, ó menino do aquário,
é muito diferente do teu sonho..
(Só os cavalos conservam a natural nobreza.)

Mario Quintana,
in A vaca e o hipogrifo







sábado, 23 de novembro de 2013

“A TERRA”



As fronteiras foram riscadas no mapa,
A terra não sabe disso:
São para elas tão inexistentes
Como esses medianos com que os velhos
Sábios a recortaram como se fosse um
Melão.

É verdade que vem sentindo há muito uns

pruridos, uma leve comichão que às vezes
se agrava: ela não sabe que são os homens...
Ela não sabe que são os homens com as suas
Guerras e outros meios de comunicação.

Mario Quintana

In “A vaca e o hipogrifo”








sexta-feira, 22 de novembro de 2013

PROJETO DE PREFÁCIO



Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um
detalhe
Um poema não é também quando paras no fim
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba
preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!

Mario Quintana
In Baú de Espantos





LXXXIX. DA ALEGRIA NAS ATRIBULAÇÕES



"Olha! o melhor é sorrires!"
Mas já se viu que lembrança!
Dá-me primeiro a bonança,
Que eu te darei o arco íris...

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

XCVI. DOS HÓSPEDES




Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia...

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

CI. DA HUMANA CONDIÇÃO



Custa o rico a entrar no Céu
(Afirma o povo e não erra).
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na terra...


Mario Quintana;
in Espelho Mágico

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Se eu Fosse um Padre



Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!


Mário Quintana,
in  Antologia Poética

VIAGEM FUTURA


Um dia aparecerão minhas tatuagens invisíveis:
marinheiro do além, encontrarei nos portos
caras amigas, estranhas caras, desconhecidos tios mortos
e eles me indagarão se é muito longe ainda o outro mundo...

Mário Quintana

In: Esconderijos do Tempo

AS TRÊS MARIAS


As únicas estrelas que eu conheço no céu são as Três Marias.
Três Marias é um apelido de família... O nome delas é outro,
sabem como é a coisa: um desses nomes roubados a mitologias
ultrapassadas, com que costumam exorcizar as estrelas.
Uns nomes que já nasceram póstumos...
Só o que eles sabem é enumerar, mapear, coisas assim trabalho
apenas digno de robôs.
Olhem, Marias, acheguem-se, escutem: Vocês foram catalogadas.
Ouviram bem? Ca-ta-lo-ga-das! O consolo é o povo, que ainda
diz ignorantemente: "Olha lá as Três Marias!"


Mario Quintana ,
in A Vaca e o Hipogrifo

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O APANHADOR DE POEMAS




Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro
engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso
um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro.
Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o
espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência
e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe
armemos ciladas: com rimas, que são o seu alpiste;
há poemas que só se deixam apanhar com isto.
Outros que só ficam presos atrás das catorze grades
de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias
e aliterações, para que ele cante. É preciso
recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar.
E há os poemas livres, imprevisíveis, esses é
preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.

Mario Quintana,
in Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)





domingo, 17 de novembro de 2013

BILHETE


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
Enfim
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve
ainda...
 
Mario Quintana
In Melhores Poemas

QUEM BATE?



Cecília.Cecília que chega de um pátio da infância...
Traz ainda sereno nas tranças, seus sapatinhos andaram
pulando na grama...Depois assenta-se nos degraus da
torre, e canta...
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe as tranças, teceu
cordoalhas para o seu navio.Mas o chaveiro do sonho
pegou-lhe a canção...E fez um vento longo e triste.
E eu pensava que toda a minha tristeza vinha apenas
do vento, da solidão do mar, da incerteza daquela
viagem num navio perdido. 
Mario Quintana
In Sapato Florido

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

AQUARELA DE APÓS-CHUVA



No peitoril de todas as janelas
Há uma flor convalescente...
No céu desenha-se um pálido sorriso...
Só o teu nome, que estava quase desmaiado no meu peito,
Aviva-se em brasa como uma cicatriz.


Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural

'Da caridade'


Se se pudesse dar, indefinidamente,
Mas sem, do que se deu, nada perder, em suma,
Ainda assim, muita gente
Nunca daria coisa alguma...


Mário Quintana
Apontamentos de história sobrenatural