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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Ah, sim, a velha poesia



Poesia, a velha amiga...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importânica nenhuma...
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo, lá fora, os grilos?
Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.


Entrego-lhe grilos aos milhões um lápis verde um
retrato amarelecido um velho ovo de costura os teus
pecados as reivindicações as explicações - menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos...


Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coi-
sa que parece que nada tem a ver com os
ingredientes mas que tem por isso mesmo um sa-
bor total eternamente esse gosto de nunca e de
sempre.

Mário Quintana ,
in Nova Antologia Póética



Uni-Verso




“Treme a folha no galho mais alto" - escrevo.
Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom
da terra, do capim chovido...
Parece que quer vir um poema...
Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente,
a linha que escrevi no alto da página.
Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos.
Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras.
O vento fareja-me a face como um cachorro.
Eu farejo o poema.
Ah, todo o mundo sabe que a poesia está em toda parte,
mas agora cabe toda ela na folha que treme.
Por que não caberia então em um único verso?
Um uni-verso.
Treme a folha no galho mais alto.
(O resto é paisagem...)

Mário Quintana,
in caderno H


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

CLARO ENIGMA




...negras flores que se abrem
sob a chuva...

Mario Quintana,
in A cor do Invisível





A VISITANTE



O seu olhar imensamente verde
ilumina o meu quarto

Mario Quintana,
in A Cor do Invisível

CARTA



Eu queria trazer-te uma imagem qualquer
para os teus anos…
Oh! Mas apenas este vazio doloroso
de uma sala de espera onde não está ninguém…
E' que,
longe de ti, de tuas mãos milagrosas
de onde os meus versos voavam - pássaros de luz
a que deste vida com o teu calor -
é que longe de ti eu me sinto perdido
- sabes? -
desertamente  perdido de mim !
Em vão procuro…
mas só vejo de bom, mas só vejo de puro
este céu que eu avisto da minha janela.
E assim, querida,
eu te mando este céu, todo este céu de Porto Alegre
e aquela
nuvenzinha
que está sonhando, agora, em pleno azul !

Mario Quintana,
in A Cor do Invisível,




terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

REMISSÃO


Naquele dia fazia um azul tão límpido,
meu Deus, que eu me sentia perdoado para
sempre não sei de quê.

Mario Quintana ,
in Caderno H

TEMPO



Coisa que acaba de deixar a querida
leitora um pouco mais velha ao chegar
ao fim desta linha.

Mario Quintana,
in Caderno H


XXXIII


Se não fosse Van Gogh,
o que seria do amarelo?

Mario Quintana,
in Caderno H


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O TÚNEL




Às vezes
O longo túnel do sono é iluminado,
apenas pelos olhos verdes dos fantasmas.

Mario Quintana,
in A Cor do invisível

OS PÉS



Meus pés no chão
Como custaram a reconhecer o chão!
Por fim os dedos dessedentaram-se no lodo
macio,agarraram-se ao chão...
Ah, que vontade de criar raízes!

Mario Quintana,
in Antologia Poética





domingo, 23 de fevereiro de 2014

NOTURNO




Este silêncio é feito de agonias
E de luas enormes, irreais,
Dessas que espiam pelas gradarias
Nos longos dormitórios de hospitais.


De encontro à Lua, as hirtas galharias
Estão paradas como nos vitrais
E o luar decalca nas paredes frias
Misteriosas janelas fantasmais...


O silêncio de quando, em alto mar,
Pálida, vaga aparição lunar,
Como um sonho vem vindo essa fragata...


Estranha Nau que não demanda os portos!
Com mastros de marfim, velas de prata,
Toda apinhada de meninos mortos...

Mario Quintana
in: A Rua dos Cataventos.




sábado, 22 de fevereiro de 2014

OS PARCEIROS


Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.

Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste...
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.

Insiste em quê?Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro...eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se

numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce...
Como também disfarce é a minha vida!


Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

o Eterno Cristo



O povo adora e vive suspirando por um Messias,
Que o venha libertar de tudo no mundo,
Mas quando esse Dia Santo
Chega afinal,
Todos os seus crentes, cheios de espanto e medo,
A única coisa que conseguem fazer é apedrejá-lo!



Mario Quintana;
in Velório sem defunto, 1990

O nome e as coisas



Para que estragar a simples existência das coisas com nomes
arbitrários?
Um gato não sabe que se chama gato
E Deus não sabe que se chama Deus
("Eu sou quem sou" - diz Ele no livro do Gênesis)
Eu sonho
Ë com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como deve ser a linguagem das plantas e dos animais!
Só de adjetivos, sem explicação alguma,
Mas com muito mais poesia...


Mario Quintana;
in Velório sem defunto, 1990

Este e o outro lado



Tenho uma grande curiosidade do Outro Lado.
(Que haverá do Outro Lado, meu Deus?)
Mas também não tenho muita pressa...
Porque neste nosso mundo há belas panteras,
nuvens, mulheres belas,
Árvores de um verde assustadoramente ecológico!
E lá - onde tudo recomeça -
Talvez não chova nunca,
Para a gente poder ficar em casa
Com saudades daqui...


Mario Quintana;
in Velório sem defunto, 1990

Nos salões do sonho



Mas vocês não repararam, não?!
Nos salões do sonho nunca há espelhos...
Por quê?
Será porque somos tão nós mesmos
Que dispensamos o vão testemunho dos reflexos?
Ou, então
- e aqui começa um arrepio -
Seremos acaso tão outros?
Tão outros mesmos que não suportaríamos a visão daquilo,
Daquela coisa que nos estivesse olhando fixamente do outro lado,
Se espelhos houvesse!
Ninguém pode saber... Só o diria
Mas nada diz,
Por motivos que só ele conhece,
O misterioso Cenarista dos Sonhos!


Mario Quintana;
in Velório sem defunto, 1990

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

LUZ POR DENTRO




Mas há uma beleza interior, de dentro para fora, a transluzir
de certas avozinhas trêmulas, de certos velhos nodosos e
graves como troncos. De que será ela feita, que nem notamos
como a erosão dos anos os terá deformado. Deviam ser
caricaturas mas não fazem rir, uns aleijões mas não causam
pena. O mesmo não nos acontece ante o penoso espetáculo de
um animal velho. Eu gostaria de acreditar que essa
inexplicável beleza dos velhos talvez fosse uma prova da
existência da alma.


Mario Quintana
In Na Volta da Esquina

DA SAUDOSA DISTÂNCIA


Antes, muito antes que o rádio houvesse conspurcado
os espaços, escrevi em Alegrete um poema de
que apenas recordo estes versos:
"entre a minha casa e a tua
  há uma ponte de estrelas"
Era uma ponte de silêncio...Quando muito, uma
nova Ponte de Suspiros.Agora Maria acaba de me
telefonar do Rio. Não era a voz dela.Havia algo de
mecânico e metálico, de inumano naquela voz,
como se fora a voz de uma maria-robô.Faltava-lhe
esse calor humano que só a presença animal de uma
pessoa nos pode transmitir...e que faz com que
qualquer mentira tenha tanta verdade!

Mario Quintana
In Na Volta da Esquina

CANÇÃO DO FUNDO DO TEMPO




Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Creio que jamais te vi...
Linda corça  enrodilhada
À espera do sacrifício,
Parece que te vejo agora
Só agora!
Levemente desenhada
Nos móveis biombos do tempo
Feitos de água e de gaze...
Ah! se eu pudesse jogar-me
Às águas que já passaram,
Decerto que morreria
Ou ficaria mais louco
Do que os anjos rebelados:
Ninguém quebra a lei do tempo,
Basta os cabelos de mortos
Que se enroscam em meus dedos,
Basta as vozes tão amadas
Que me chamam de tão longe...
Ah, decerto que eu morreria,
Se é que já não morri!
Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Por trás dos muros do tempo,
As pessoas que eu amava
Amaram-se entre si.

Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural

ALQUIMIAS




Naquela mistura
fumegante e colorida
que a pá
não para de agitar
vê-se
o infinito olhar de um morimbundo
o primeiro olhar de um primeiro amor
um trem a passar numa gare deserta
uma estrela remota um pince-nez perdido
o sexo do outro sexo
a mágica de um santo carregando sua própria cabeça
e de tudo
finalmente
evola-se o poema daquele dia
- que fala em coisa muito diferente...


Mario Quintana
In Esconderijos do Tempo








quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

DELÍCIA DE...


Delícia de fechar os olhos por um instante e assim ficar,
 sozinho, fabricando escuro... sabendo que existe a luz!


Mario Quintana ,
 in Caderno H

O Rio



A morte é um rio onde a gente
Embarca de olhos fechados
Se queres partir contente
Nada deixes deste lado.
É deste lado de cá
Que moram nossos cuidados.
Penas que amor nos deixou
São penas que o vento trouxe
São pelo vento levadas.
Fecha os olhos bem fechados
Basta de tanta rima em "ados"
Dorme o teu sono profundo
Longe, cada vez mais longe
Deste mundo e seus cuidados.


Mario Quintana,
in A cor do invisível


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Veneração



Ah, esses livros que nos vêm às mãos, na Biblioteca Pública
e que nos enchem os dedos de poeira. Não reclames, não.
A poeira das bibliotecas é a verdadeira poeira dos séculos.

Mario Quintana
in: Caderno H


Palavra Escrita


Por vezes, quando estou escrevendo este cadernos,
tenho um medo idiota de que saiam póstumos.
Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma?
Tudo que sai impresso é epitáfio.

Mario Quintana,
in: Caderno H, Editora Globo - Porto Alegre, 1973




segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

CARTAZ PARA TURISTAS



Viajar é mudar o cenário da solidão.

Mario Quintana,
in Caderno H




O TERRÍVEL INSTANTE


Antes de escrever, eu olho, assustado,
para a página branca de susto.

Mario Quintana,
in Caderno H

CACHORRO



Cria da casa, bom confidente
e complemento das crianças.

Mario Quintana,
in Caderno H


O HOMEM E O SEU CÃO

Todo esse apego do homem ao cachorro
é porque o cachorro considera o seu
dono o primeiro homem do mundo...

Mario Quintana,
in Caderno H


O AMIGO



 Amigo é a criatura que escuta todas as nossas coisas
sem aquela cara que parece estar dizendo:
- E eu com isso?

Mario Quintana ,
in Caderno H




MUNDO



E eis que naquele dia a folhinha marcava
uma data em caracteres desconhecidos,
Uma data ilegível e maravilhosa.

Quem viria bater à minha porta?

Ai, agora era um outro dançar, outros os sonhos
e incertezas,

Outro amar sob estranhos zodíacos...

Outro...

E o terror de construir mitologias novas!

Mario Quintana;
in O Aprendiz de Feiticeiro

TALVEZ E SEM DÚVIDA


Envelhecer sem criar experiência - talvez nisso consista um dos
tantos segredos da vida. Mas é, sem dúvida nenhuma,
o grande segredo da poesia.


Mario Quintana,
in Porta Giratória






Canção de um dia de vento



O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.

Mario Quintana -
in Nariz de Vidro


OLHO AS MINHAS MÃOS



Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do
fundo do mar...Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras !
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável
do tempo,Que me sustenta, e mata, e que vai
secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço ?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação !
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?
Quem faz - em mim - esta interrogação ?


Mario Quintana ,
in 80 Anos de Poesia

Busca



Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando
poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro
andará desperdiçado por aí...
Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!

Mario Quintana;
in Poesia Completa: Poemas para a Infância


SEMPRE



Jamais se saberá com que meticuloso cuidado
Veio o Todo e apagou o vestígio de Tudo
E
Quando nem mais suspiros havia
Ele surgiu de um salto
Vendendo súbitos espanadores de todas as cores!

Mario Quintana;
in O Aprendiz de Feiticeiro


LILI


Teu riso de vidro
desce as escadas às cambalhotas
e nem se quebra,
Lili,
meu fantasminha predileto!
Não que tenhas morrido...
Quem entra num poema não morre nunca
(e tu entraste em muitos...)
Muita gente até me pergunta quem és... De tão querida
és talvez a minha irmã mais velha
nos tempos em que eu nem havia nascido.

És Gabriela, a Liane, a Angelina... sei lá!
És Bruna em pequenina
que eu desejaria acabar de criar.
Talvez sejas apenas a minha infância!
E que importa, enfim, se não existes...
Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina,
pelos nossos encontros, por esse carinho
de filha que eu não tive...

Mario Quintana ,
in Esconderijos do Tempo






INDIVISÍVEIS



O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.
Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

Mario Quintana,
in  Antologia Poética




CANÇÃO DO FUNDO DO TEMPO




Longe andava meu olhar.
Longe andava...
Creio que jamais te vi...
Linda corça enrodilhada
À espera do sacrifício.
Parece que te vejo agora
Só agora!
Levemente desenhada
Nós móveis biombos do tempo
Feitos de água e de gaze...
Ah! Se eu pudesse jogar-me às águas que já passaram,
Decerto que morreria
Ou ficaria mais louco
Do que os anjos rebelados:
Ninguém quebra a lei do tempo,
Basta os cabelos de mortos
Que se enroscam em meus dedos,
Basta as vozes tão amadas
Que me chamam de tão longe...
Ah! Decerto que eu morreria,
Se é que já não morri!
Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Por trás dos muros do tempo,
As pessoas que eu amava
Amaram-se entre si.

Mario Quintana,
in Esconderijos do Tempo


















PARÊNTESIS



(Em meio ao turbilhão do mundo
O Poeta reza sem fé)

Mario Quintana,
in A Vaca e o Hipogrifo




NÃO OLHE PARA OS LADOS



Seja um poema, uma tela ou o que for,
não procure ser diferente.
O segredo único está em ser
indiferente.

Mario Quintana,
in A Vaca e o Hipogrifo





O MENINO E O MILAGRE


O primeiro verso que um poeta faz é sempre
o mais belo porque toda poesia do mundo
está em ser aquele o seu primeiro verso...

Mario Quintana,
in A Vaca e o Hipogrifo


SÓ SE DEVE MORRER DE PURO AMOR



Nunca ninguém sabe se estou louco para
rir ou para chorar.
Por isso o meu verso tem
Esse quase imperceptível tremor...
A vida é louca, o mundo é triste:
Vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor...

Mario Quintana,
in Preparativos de viagem




III Do estilo



Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

Mario Quintana
In: Espelho Mágico

CONVERSA FIADA




Eu gosto de fazer poemas de um único verso.
Até mesmo de uma única palavra
Como quando escrevo o teu nome no meio da página
E fico pensando mais ou menos em ti
Porque penso, também, em tantas coisas... em ninhos
Não sei por que vazios em meio de uma estrada
Deserta...
Penso em súbitos cometas anunciadores de um Mundo Novo
E imagina!
Penso em meus primeiros exercícios de álgebra,
Eu que tanto, tanto os odiava...
Eu que naquele tempo vivia dopando-me em cores, flores,
amores,
Nos olhos-flores das menininhas - isso mesmo! O mundo
Era um livro de figuras
Oh! os meus paladinos, as minhas princesas prisioneiras
em suas altas torres,
Os meus dragões
Horrendos
Mas tão coloridos...
E - já então o trovoar dos versos de Camões:
- "Que o menor mal de todos seja a morte!"
Ah, prometo àqueles meus professores desiludidos que na
próxima vida eu vou ser um grande matemático
Porque a matemática é o único pensamento sem dor...
Prometo, prometo, sim... Estou mentindo? Estou!
Tão bom morrer de amor! e continuar vivendo...

Mario Quintana ,
in Baú de Espantos - 1986









BATALHÃO DE LETRAS



Aqui vão todas as letras,
Desde o A até o Z,
Pra você fazer com elas
O que esperam de você…

Aí vem o Batalhão das Letras
E, na frente, a comandá-lo,
O A, de pernas abertas,
Montado no seu cavalo.

Com um B se escreve BALÃO,
Com um B se escreve BEBÊ,
Com um B os menininhos
Jogam BOLA e BILBOQUÊ.

Com C se escreve CACHORRO,
Confidente das CRIANÇAS
E que sabe seus amores,
Suas queixas e esperanças…

Com um D se escreve DEDO,
Que poderá ser mau ou sábio,
Desde o dedo acusador
Ao D do dedo no lábio…

O E da nossa ESPERANÇA
Que é também o nosso ESCUDO
É o mesmo E das ESCOLAS
Onde se aprende de tudo.

Com F se escreve FUGA,
FRADES, FLORES e FORMIGAS
E as crianças malcriadas
Com F é que fazem FIGAS.

O G é letra importante,
Como assim logo se vê:
Com um G se escreve GLOBO
E o globo GIRA com G.

Com H se escreve HOJE
Mas “ontem” não tem H…
Pois o que importa na vida
É o dia que virá!

O I é a letra do ÍNDIO,
Que alguns julgam ILETRADO…
Mas o índio é mais sabido
Que muito doutor formado!

Com J se escreve JULIETA,
Com J se escreve JOSÉ:
Um joga na borboleta,
O outro no jacaré.

O K parece uma letra
Que sozinha vai andando,
Lembra estradas, andarilhos
E passarinhos em bando…

O L lembra o doce LAR,
Lembra um casal à LAREIRA!
O L lembra LAZER
Da doce vida solteira…

Com M se escreve MÃO.
E agora vê que engraçado:
Na palma da tua mão
Tens um M desenhado!

N é a letra dos teimosos,
Da gente sem coração:
Com N se escreve – NUNCA!
Com N se escreve – NÃO!

Outras letras dizem tudo.
Mas o O nos desconcerta.
Parece meio abobalhado:
Sempre está de boca aberta…

Quem diz que ama a POESIA
E não a sabe fazer
É apenas um POETA inédito
Que se esqueceu de escrever…

Esse Q das QUEIJADINHAS,
Dos bons QUITUTES de QUIABO
Era um O tão mentiroso
Que um dia criou rabo!

Os RATOS morrem de RISO
Ao roer o queijo prato.
Mas para que tanto riso?
Quem ri por último é o gato.

Acheguem-se com cuidado,
De olho aceso, minha gente:
O S tem forma de cobra,
Com ele se escreve SERPENTE.

É o T das TRANÇAS compridas,
Boas da gente puxar;
Jeito bom de namorar
As menininhas queridas…

O U é a letra do luto!
O U do URUBU pousado
Nas negras noites sem lua
Num palanque do banhado…

Este V é o V de VIAGEM
E do VENTO vagabundo
Que sem pagar a passagem
Corre todo o vasto mundo.

Era uma vez um M poeta
Que um dia, em busca de uma rima,
Caiu de pernas pra cima
E virou um belo dábliu!
Coisa assim nunca se viu,
Mas é a história verdadeira
De como o dábliu surgiu…

Com um X se escreve XÍCARA,
Com X se escreve XIXI.
Não faças xixi na xícara…
O que irão dizer de ti?!

Ypsilon – letra dos diabos,
Que engasga o mais sabichão!
Por isso o povo e as crianças
A chamam de “pissilão”…

O Z é a letra de ZEBRA,
E letras das mais infames.
Com um Z os menininhos
Levam ZERO nos exames.

E todas as vinte e seis letras
Que aprendeste num segundo
São vinte e seis estrelinhas
Brilhando no céu do mundo!


Mario Quintana -
de Poesia Completa

ESTRANHAS AVENTURAS DA INFÂNCIA



Era um caminho tão pequenino
Que nem sabia aonde ia,
Por entre uns morros se perdia
Que ele pensava que eram montanhas...

Enquanto a tarde, lenta, caia,
Aflitamente o procuramos.
Sozinho assim, aonde iria?
Porém, deixamos para um outro dia...

Perdido e só, nós o deixamos!

E quando, enfim, ali voltamos
Já nada havia, só ervas mas...
Tão vasto e triste sentiste o mundo
Que te achegaste, desamparada...

E foi bem juntos que regressamos,
Ombro com ombro, a mão na mão,
Enquanto, lenta, caía a tarde
E nos espiava a bruxa negra...

E nos seguia a bruxa negra
Que hoje se chama Solidão!

Mario Quintana
In Baú de Espantos