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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

SONETO AZUL



Quando desperto mansamente agora
é toda um sonho azul minha janela
e nela ficam presos estes olhos,
amando-te no céu que faz lá fora.

Tu me sorris em tudo, misteriosa...
e a rua que - tal como outrora - desço,
a velha rua, eu mal a reconheço
em sua graça de menina-moça...

Riso na boca e vento no cabelo,
delas vem vindo um bando... E ao vê-lo
por um acaso olha-me a mais bela.

Sabes, eu amo-te a perder de vista...
e bebo então, com uma saudade louca,
teu grande olhar azul nos olhos dela!

Mario Quintana
In Baú de Espantos

terça-feira, 27 de agosto de 2013

XCVI. DOS HÓSPEDES




Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia...

Mario Quintana,
in Espelho Mágico

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

PRESENÇA



É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.


Mario Quintana,
in  Melhores Poemas 

A COMPANHEIRA



A lua parte com quem partiu e fica com quem ficou. E,
pacientemente, consoladoramente, aguarda os suicidas
no fundo do poço.

Mario Quintana
In: Sapato Florido

domingo, 25 de agosto de 2013

HAI-KAI


Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?

Mario Quintana,
in 80 anos de Poesia

sábado, 24 de agosto de 2013

OLHO AS MINHAS MÃOS



Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do 
fundo do mar...Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras ! 
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável
do tempo,Que me sustenta, e mata, e que vai 
secretando o pensamento 
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço ?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando 
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos 
Palavras mágicas,
Fazemos 
Poemas, pobres poemas
Que o vento Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar 
Foi este o fim da Criação !
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?
Quem faz - em mim - esta interrogação ?
 

Mario Quintana ,
in 80 Anos de Poesia

LIX.


 DO RISO

As setas de ouro de teu riso inflige
À sombra que te quer amedrontar.
Um canto muros erige:
Um riso os faz desabar.

Mario Quintana;
in Espelho Mágico

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O QUE ACONTECE COM AS CRIANÇAS



Aprendi a escrever lendo, da mesma forma que se
aprende a falar ouvindo. Naturalmente, quase sem
querer, numa espécie de método subliminar. Em meus
tempos de criança, era aquela encantação. Lia-se
continuamente e avidamente um mundaréu de histórias (e não
estórias) principalmente as do Tico-Tico. Mas lia-se
corrido, isto é, frase após frase, do princípio ao fim.
Ora, as crianças de hoje não se acostumam a ler
correntemente, porque apenas olham as figuras dessas
histórias em quadrinhos, cujo "texto" se limita a
simples frases interjetivas e assim mesmo muita vez
incorretas. No fundo, uma fraseologia de guinchos e uivos.
uma subliteratura de homem das cavernas.
Exagerei? Bem feito! Mas se essas crianças,
coitadas, nunca adquiriram o hábito da leitura, como
saberão um dia escrever?

Mario Quintana , 
in Caderno H

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

INTERROGAÇÕES



Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é uma pergunta do poeta.
E as estrelas...
as flores...
o mundo...
são perguntas de Deus.

Mario Quintana
Apontamentos de História Sobrenatural


EU OUÇO MÚSICA




Eu ouço música
Como quem apanha chuva
Resignado e triste
De saber que existe um mundo
Do outro mundo...

Eu ouço música
Como quem está morto
E sente já
Um profundo desconforto
De me verem ainda
Neste mundo de cá...

Perdoai,
Maestros,
Meu estranho ar!

Eu ouço música como um anjo doente
Que não pode voar


Mário Quintana
In Apontamentos de história sobrenatural

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O MOTIVO DA ROSA



A ROSA, bela Infanta das sete saias
E cuja estirpe não lhe rouba, entanto,
O ar de menina, o recato encanto
Da mais humilde de suas aias,
A rosa, essa presença feminina,
Que é toda feita de perfume e alma,
Que tanto excita como tanto acalma,
A rosa... é como estar junto da gente
Um corpo cuja posse se demora
- brutal que o tenhas nesta mesma hora,
Em sua virgindade inexperiente...
Rosa, ó fiel promessa de ventura
Em flor... rosa paciente, ardente, pura!

Mario Quintana 
In: Apontamentos de História sobrenatural


terça-feira, 20 de agosto de 2013

BAÚ DE ESPANTOS




Com Baú de espantos, publicado em 1986, Mario Quintana
 completa o conjunto iniciado dez anos antes com 
Apontamentos de história sobrenatural(1976) e integrado
 também por Esconderijos do tempo (1980). Essas três 
obras reafirmam e acentuam certos traços dispersos em
 livros anteriores: a tendência ao onírico, a reflexão
 sobre o poema, sobre a morte e a densidade dramática
 de sua poesia lírica.O vínculo com os livros precedentes
 é estabelecido desde a epígrafe de dois versos do poema 
“Esconderijos do tempo”, que intitulava a obra 
imediatamente anterior, e se fortalece pela maneira 
peculiar de recuperar a infância, os objetos perdidos
 e reencontrados, as velhas casas e outros fatos da 
vida, nos quais o quotidiano ganha uma expressão 
fantasmal, marcas de sua poesia desde os sonetos
 de A rua dos cataventos (1940). Também aqui,
 o poeta acredita não só no que vê, mas no que imagina.

Tânia Franco Carvalhal

CÂNTICO



O vento verga as árvores, o vento clamoroso da aurora...
Tu vens precedida pelos vôos altos,
Pela marcha lenta das nuvens.
Tu vens do mar, comandando as frotas do descobrimento!
Minh'alma é trêmula da revoada dos Arcanjos.
Eu escancaro amplamente as janelas.
Tu vens montada no claro touro da aurora.
Os clarins de ouro dos teus cabelos cantam na luz!

Mario Quintana
In Melhores Poemas








'POEMA EM TRÊS MOVIMENTOS




I

Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
-como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.


II

Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu – sem saionara nem nada –
por uma porta diferente.


III

E em que mundo? em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.



Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


A CANÇÃO DO MAR



Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar...

O mar é embalado
Pelos afogados!

O canto do vento
Do vento no mar
Não é um canto
Para te ninar...

São eles que tentam
Que tentam falar!

Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar...

Um dia viremos
Vestidos de algas

Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas

Um dia viremos
Com barcos e remos

Um dia...

Dorme, filhinha...
São vozes, são vento, são nada...

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo


DAS BELAS FRASES



Frases felizes. . . Frases encantadas. . .
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas. . .
Como há pacóvios bem vestidos.

Mário Quintana
In: Espelho Mágico


DO ESTILO



Fere de leve a frase. . . E esquece. . . Nada
Convém que se repita. . .
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.


Mário Quintana
In: Espelho Mágico




DO AMIGO



Olha! É como um vaso
De porcelana rara o teu amigo.
Nunca te sirvas dele. . . Que perigo!
Quebrar-se-ia, acaso. . .


Mário Quintana,
in Espelho Mágico


DA OBSERVAÇÃO



Não te irrites, por mais que te fizerem. . .
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio. . .


Mário Quintana
In: Espelho Mágico

ESPELHO MÁGICO



Em 1951 é publicado, pela Editora Globo, o livro 
Espelho Mágico, uma coleção de quartetos, que trazia
 na orelha comentários de Monteiro Lobato.

É o quinto livro publicado por Mario Quintana.
 Nesse início de década, a poesia brasileira assiste
 por exemplo, publica uma coletânea que busca alternativas 
ao chamado projeto modernista.É em tal cenário de mudanças 
que Mario Quintana lança o Espelho Mágico.Mas seu livro não
 se filia às novidades trazidas pelos poetas do final da 
década de 40. Em lugar disso Quintana recorre a quadra,
 forma de poesia conhecida desde a Idade Média.
A quadra ou quarteto é forma frequente em composições 
populares e mesmo folclóricas, também de largo emprego
 entre os poetas cultos entre os quais encontra-se o 
português Fernando Pessoa. Inserindo-se portanto na 
tradição de poetas cultos que retomam formas poéticas
 tradicionais ou populares Mario Quintana cria 111
 quadras em que aborda temas variados,todos relativos
 a saberes, conhecimentos e experiências comuns a toda
 a humanidade.Nas quadras de O ESPELHO MAGICO, o 
resgate da capacidade comunicativa não é apenas tema
 dos versos.Ele é experimentado e demonstrado,
 uma vez que o Eu lírico dirige-se constantemente
 ao Outro de maneira mais ou menos explícita.

CANÇÃO DE UM DIA DE VENTO




Para Maurício Rosenblatt

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.

Nunca a água foi tão pura. . .
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.

E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule. . .

Menos um lugar na mesa,
Mais um nome na oração,
Da que consigo levara
Cruz, âncora e coração

(E o vento vinha ventando. . .)

Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão!


Mário Quintana
In: Canções


PRIMAVERA



Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...
Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido.

Mário Quintana
in Antologia Poética





MEU TRECHO PREDILETO



O que mais me comove, em música, 
são essas notas soltas -pobres notas 
únicas que do teclado arranca o 
afinador de pianos...

Mario Quintana
de Sapato Florido


CHÃO DE OUTONO



Ao longo das pedras irregulares do calçamento passam 
ventando umas pobres folhas amarelas em pânico,
 perseguidas de perto por um convite-de-enterro, 
sinistro, tatalando, aos pulos, cada vez mais perto, 
as duas asas tarjadas de negro.

Mário Quintana
de 'Sapato Florido'

FRAGMENTO DE ODE



Camões,
Seu nome retorcido como um búzio!
Nele sopra Netuno... 

Mario Quintana
de Antologia Poética.



A NOITE GRANDE



Sem o coaxar dos sapos ou o cricri dos grilos
como é que poderíamos dormir tranquilos
a nossa eternidade? Imagina
uma noite sem o palpitar das estrelas
sem o fluir misterioso das águas.
Não digo que a gente saiba que são águas
estrelas
grilos...
- morrer é simplesmente esquecer as palavras.
E conhecermos Deus, talvez
sem o terror da palavra Deus!

Mario Quintana
de  Antologia Poética

INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA



A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...

Mario Quintana,
in  Antologia poética





OS HOSPEDES



Um velho casarão bem-assombrado
Aquele que habitei ultimamente.
Não,
Não tinha disso de arrastar correntes
Ou espelhos de súbito partidos.

Mas a linda visão evanescente
Dessas moças do século passado
As escadas descendo lentamente...

Ou, às vezes, nos cantos mais escuros,
Velhinhas procurando os seus guardados
No fundo de uns baús inexistentes...

E eu, fingindo que não via nada.

Mas para que, amigos, tais cuidados?
Agora
Foi demolida a nossa velha casa!

(Em que mundo marcaremos nosso encontro?)

Mario Quintana
In “A vaca e o hipogrifo” 


NOVA ANTOLOGIA POÉTICA



Um crítico afirmou que as reticências no estilo de Mário Quintana 
indicam uma forma de pensar mais baixinho, como em surdina...
 Nos textos que compõem esta"Nova Antologia Poética" , 
o pianíssimo das reticências também está presente, em sinfonia, 
e o leitor mais apurado perceberá o ritmo dos poemas 
selecionados pelo autor, a musicalidade e os aspectos mágicos,
diferentes... E observará também outros lados, outras imagens 
que tentam "aprisionar" o poeta, considerado desligado para
uns, exótico para outros... E ao mesmo tempo auxiliará o leitor
 a formar um retrato acabado do poeta, porque a poesia de 
Mário Quintana é como ele é.

A "Antologia Poética" foi publicada pela primeira vez em 1966,
 pela Editora do Autor, e foi organizada por Paulo Mendes Campos
 e Rubem Braga. A "Nova Antologia" , publicada pela Codecri,
 saiu em 1980, com seleção do próprio poeta. Em 1985, com o 
lançamento desta edição, revisada e ampliada, a Editora Globo 
juntou ao seu catálogo uma das mais expressivas obras da 
poesia brasileira.





A RUA DOS CATAVENTOS II


XII
Para Erico Verissimo

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...


Mariro Quintana
de A Rua dos Cataventos


CANÇÃO DE BARCO E DE OLVIDO



Para Augusto Meyer 

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

Mario Quintana
De Rua dos Cataventos

O MAPA




Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Mario Quintana
de 'Apontamentos de História Sobrenatural' 

O MILAGRE



Dias maravilhosos em que os jornais vêm cheios de poesia...
E do lábio do amigo brotam palavras de eterno encanto...
Dias mágicos...
Em que os burgueses espiam,
Através das vidraças dos escritórios,
A graça gratuita das nuvens...

Mário Quintana
de Nova Antologia Poética








A VERDADEIRA ARTE DE VIAJAR



 A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!


Mario Quintana 
de “A cor do invisível”



O ADOLESCENTE



A vida é tão bela que chega a dar medo.
Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas

esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com o teu desejo!

Mario Quintana
de Nariz de Vidro




A GENTE AINDA NÃO SABIA



A gente ainda não sabia que a Terra era redonda.
E pensava-se que nalgum lugar, muito longe,
Deveria haver num velho poste uma tabuleta qualquer
— uma tabuleta meio torta
E onde se lia, em letras rústicas: FIM DO MUNDO.
Ah! Depois nos ensinaram que o mundo não tem fim
E não havia remédio senão irmos andando às tontas
Como formigas na casca de uma laranja.
Como era possível, como era possível, meu Deus,
Viver naquela confusão?
Foi por isso que estabelecemos uma porção de fins de mundo...

Mario Quintana
de 'Nariz de Vidro'






CANÇÃO DA PRIMAVERA



Um azul do céu mais alto,
Do vento a canção mais pura
Me acordou, num sobressalto,
Como a outra criatura...

Só conheci meus sapatos
Me esperando, amigos fiéis,
Tão afastado me achava
Dos meus antigos papéis!

Dormi, cheio de cuidados
Como um barco soçobrando,
Por entre uns sonhos pesados
Que nem morcegos voejando...

Quem foi que ao rezar por mim
mudou o rumo da vela
Para que eu desperte, assim,
Como dentro de uma tela?

Um azul do céu mais alto,
Do vento a canção mais pura
E agora... este sobressalto...
Esta nova criatura!

Mario Quintana 
de 'Nariz de Vidro'


DOS LIVROS


Não percas nunca, pelo vão saber,
A fonte viva da sabedoria.
Por mais que estudes, que te adiantaria,
Se a teu amigo tu não sabes ler? 

Mario Quintana
In: Espelho Mágico


REFLEXO E REFLEXÕES...


I

Quando a idade dos reflexos, rápidos, inconscientes,
Cede lugar a idade das reflexões – terá sido a sabedoria que chegou? Não! Foi apenas a velhice.

II
Velhice é quando um dia as moças começam a nos
Tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum.

III

Ora, ora! Não se preocupe com os anos que já faturou: a idade é o menor sintoma de velhice.


Mario Quintana
In “A vaca e o hipogrifo”

AH,OS RELÓGIOS




Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os anjos entreolham-se espantados
quando alguém – ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são…

Mario Quintana 
de 'A Cor do Invisível'.






É A MESMA A RUAZINHA SOSSEGADA



É a mesma a ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...

E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!

Pobres cartazes por ai afora
Que ainda anunciam: - ALEGRIA - RISOS
Depois do Circo já ter ido embora...


Mario Quintana
de Nariz de Vidro.

OS POEMAS



Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não tem pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles estava em ti...

Mario Quintana
de Nariz de vidro. 

Poema XXVIII



Sobre a coberta o lívido marfim
Dos meus dedos compridos, amarelos...
Fora, um realejo toca para mim
Valsas antigas, velhos ritornelos.


E esquecido que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
Tão altos sempre...cada vez mais belos!...
Nem D. Quixote teve morte assim...


Mas que ouço? Quem será que está chorando?
Se soubésseis o quanto isto me enfada!
...E eu fico a olhar o céu pela janela...


Minha alma louca há de sair cantando
Naquela nuvem que lá está parada
E mais parece um lindo barco a vela!...

Mario Quintana
de Rua dos Cataventos

ENTRESSONO


A manhã se debruça ao peitoril,
Não sei por que está gritando: abril, abril!
Há, por vezes, manhãs que são sempre de abril...
A manhã, com todas as suas árvores ao vento,
Traz-me as primeiras notícias da frota do Descobrimento,
Sem reparar na presença dos arranha-céus.
Mas eu nem abro os olhos: vou dormir...
Creio que ainda chegarei a tempo
Para a Primeira Missa no Brasil.

Mário Quintana
in  Antologia Poética



O PASSAGEIRO CLANDESTINO



No porta-malas do meu automóvel
levo o anjo escondido...
Quando chegamos a um descampado,
ele sai lá de dentro, distende as asas, belo como a Vitória de Samotrática...
e eu, então, nos seus ombros, dou uma longa volta, pelos céus da cidade,
porém temos logo de regressar a nossos antros de cimento
- antes que a serenata dos sapos, mais uma vez,
venha cantar,
à beira dos banhados,
à nossa modesta aventura de um domingo burguês.

Mário Quintana
in  Antologia Poética





SEMPRE QUE CHOVE



Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!

Mario Quintana
Preparativos de Viagem

XL



'' Do sabor das coisas''

Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...


Mario Quintana
In: Espelho Mágico

XXXVII



'' Da contradição''

Se te contradisseste e acusam-te... sorri.
Pois nada houve, em realidade.
Teu pensamento é que chegou, por si,
Ao outro pólo da Verdade... 

Mario Quintana
In: Espelho Mágico


XXXV



''Da eterna procura''

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

Mario Quintana
In: Espelho Mágico









XXXIV



''Da perfeição da vida''

Por que prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio... o Bom e o Mau... Dor e Prazer...
Tudo, afinal, são formas
E não degraus do Ser!

Mario Quintana,
in Espelho Mágico