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quarta-feira, 30 de abril de 2014

QUEM AMA...



Camões escreveu:
"Quem ama inventa as penas em que vive"
"Quem ama inventa as coisas a que ama",
acrescentaria eu, se a tanto me
atrevesse.

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho








O VENTO


O vento  gosta é de cantar:
quem faz uma letra para a canção do vento?

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho




A DIFERENÇA



No campo as estrelas brilham.
Na cidade as estrelas ardem.

Mario Quintana, 
in Da Preguiça como Método de Trabalho


O JOGO DA ESPERANÇA



Quando morremos acontece com as nossas
esperanças o mesmo que com esse brinquedo
de estátuas, em que todas se imobilizam
de súbito, cada qual na posição do momento.
Mas as esperanças têm menos paciência.
E vão imediatamente continuar, no coração
de outros, o seu velho sonho interrompido.

Mario Quintana,
in Da Preguiça como Método de Trabalho





segunda-feira, 28 de abril de 2014

A HARMONIA DAS FORMAS




Antes, elas eram violões. Hoje viraram
violinos. Naturalmente, continuam raríssimos
os Stradivarius...

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural

O VELHO POETA



O velho poeta...um velho poeta...ah!
não é o que vocês pensam...Não, ele não 
está comodamente sentado em cima dos louros,
sem espetar-se. Felizmente a inquietação
continua: ele nunca sabe se o seu próximo 
verso vai sair bom mesmo ou tão 
comovedoramente ruinzinho como os primeiros
versos que fez em menininho. E o velho coração
continua...curtindo sempre um eterno e
penúltimo amor.

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural


OS PÉS



Meus pés no chão
Como custaram a reconhecer o chão!
Por fim os dedos dessedentaram-se no lodo
macio, agarraram-se ao chão...
Ah! que vontade de criar raízes!

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural

BIOGRAFIA




Entre o olhar suspeitoso da tia
E o olhar confiante do cão
O menino inventava a poesia...

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural




EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS



Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais intimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca
soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como uma pobre lanterna que incendiou!


Mario Quintana ,
in Apontamentos de história sobrenatural


domingo, 27 de abril de 2014

PAUSA


Na pauta das horas há um instante de
grave, serena pausa...
É quando o último grilo parou de cantar...
E ainda não começou o canto do primeiro
pássaro...

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho.



TENTATIVA DE DEFINIÇÃO



O homem é o animal que pensa
noutras coisas.

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho.

sábado, 26 de abril de 2014

A CARTA



Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria…
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas…
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural














Momento



O mundo é frágil
E cheio de frêmitos
Como um aquário...

Sobre ele desenho
Este poema: imagem
De imagens!


Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural





sexta-feira, 25 de abril de 2014

O VENTO E A CANÇÃO



para Tania Franco Carvalho


Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer...

- é  que o voo do poema não pode parar.


Mario Quintana
In 80 Anos de Poesia


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Calçada de verão



Quando o tempo está seco, os sapatos ficam tão
 contentes que se põem a cantar.

- Mario Quintana, 
in: Sapato Florido, 1948.


Passeio



Oh! não há nada como um pé depois do outro...

- Mario Quintana,
 in: Sapato Florido, 1948.

Antemanhã


Trotam, trotam, desbarrancando o meu sono,
os burrinhos inumeráveis da madrugada.
Carregam laranjas? Carregam repolhos?
Carregam abóboras?
Não. Carregam cores. Verdes tenros.
Amarelos vivos. Vermelhos, roxos, ocres.
São os burrinhos-pintores.

- Mario Quintana,
 in: Sapato Florido, 1948.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Silêncio. Solidão. Serenidade.



"Quero morrer na selva de um país distante...
Quero morrer sozinho como um bicho!

Adeus, Cidade Maldita,
Que lá se vai o seu poeta.

Adeus para sempre, Amigos...
Vou sepultar-me no céu!

E todos estes que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!"



Mario Quintana
Esconderijos do Tempo - 1980

segunda-feira, 21 de abril de 2014

SER E ESTAR



A nuvem, a asa, o vento,
a árvore, a pedra, o morto...

tudo o que está em movimento,
tudo o que está absorto...

aparente é esse alento
de vela rumando um porto

como aparente é o jazimento
de quem na terra achou conforto...

pois tudo o que é está imerso
neste respirar do universo

- ora mais brando ora mais forte
porém sem pausa definida -

e curto é o prazo da vida...

e curto é o prazo da morte.


Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural





domingo, 20 de abril de 2014

ARRABALDE




As cores alinham-se obedientes mas meio tortas
Como nos meus primeiros exercícios de caligrafia...
Chego a sentir o cheiro da tinta azul nos dedos
Em invisíveis borrões. Olho os meus dedos:
Leque metafísico.Quando deixarei de olhar os meus dedos?
O mundo é mais vasto.A vaca muge,
Puxa-me ao presente...Vasto,vasto é o pasto!

Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatrural


sábado, 19 de abril de 2014

PASSARINHO NA TARDE DE SÁBADO




Como se fosse o primeiro passarinho do mundo
Na primeira manhã do mundo,
Voa e revoa 
Por cima da praça modesta
Onde velhinhos sentados
Fazem um pouco de sesta.
Voa e revoa, inquieto,
Por cima da gente que passa
Apressada,
Por cima das árvores
Por cima da estátua eqüestre 
Que está no meio da praça.
Esvoaça,
Esvoaça
Alegre!
Passarinho eu te acho uma graça...
Só uma coisa te peço, passarinho de 
minh'alma:
Não me faças nenhum descuido em cima
do cavalo da estátua!

Mario Quintana
In Preparativos de Viagem

BRASA DORMIDA



Da minha vida, o que eu me lembro
É uma
Sucessão de janelas fechadas
Nalgum país de sonho...

Apago-me,suponho,
como as luzes de uma festa.

Ah! uma coisa resta,
Misterioso reflexo no escuro:

Teus lábios úmidos como frutos mordidos!


Mario Quintana
In Preparativos de Viagem

quinta-feira, 17 de abril de 2014

HAI-KAI DE OUTONO




Uma borboleta amarela?
Ou uma folha seca
Que se desprendeu e não quis pousar?

Mário Quintana,
in Preparativos de Viagem

Meu trecho predileto



O que mais me comove, em música,
 são essas notas soltas 
– pobres notas únicas 
– que do teclado arranca o afinador de pianos...

- Mario Quintana, 
in: Sapato Florido, 1948.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

FUNÇÃO




Me deixaram sozinho no meio do circo
Ou era apenas um pátio uma janela uma rua
uma esquina

Pequenino mundo sem rumo


Até que descobri que todos os meus gestos
Pendiam cada um das estrelas por longos fios invisíveis

E havia súbitas e lindas aparições como aquela das
longas tranças


E todas imitavam tão bem a vida
Que por um momento se chegava a esquecer a sua
cruel inocência de bonecas


E eu dizia depois coisas tão lindas 
E tristes
Que não sabia como tinham ido parar em minha boca


E o mais triste não era que aquilo fosse apenas um
jogo cambiante de reflexos


Porque afinal um belo pião dançante
Ou zunindo imóvel
Vive uma vida mais intensa do que a mão ignorada
que o arremessou


E eu danço, tu danças e nós dançamos
Sempre dentro de um círculo implacável de luz 
Sem saber quem nos olha atenta ou distraidamente
do escuro...


Mario Quintana 
in: Apontamentos de História Sobrenatural






terça-feira, 15 de abril de 2014

As falsas recordações



Se a gente pudesse escolher a infância que teria vivido,
com que enternecimento eu não recordaria agora aquele
velho tio de perna de pau, que nunca existiu na família,
e aquele arroio que nunca passou aos fundos do quintal,
e onde íamos pescar e sestear nas tardes de verão, 
sob o zumbido inquietante dos besouros...

- Mario Quintana,
 in: Sapato Florido 1948.








Ventura




Naquela missa de Sexta-Feira da Paixão,
 notei que o velho Ventura rezava assim:
- Tchug tchug tchug tchug amém... 
Tchug tchug tchug tchug amém...
 Tchug tchug tchug...
- Assim não vale, seu Ventura.
- Ora! Ele sabe tudo o que eu quero dizer...

- Mario Quintana,
 in: Sapato Florido, 1948.



Família desencontrada



O verão é um senhor gordo sentado na varanda 
reclamando cerveja. O inverno é o vovozinho
tiritante. O outono, um tio solteirão.
A primavera, em compensação, é uma menina 
pulando corda.

- Mario Quintana, 
in: Caderno H, 1973.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O Colegial



O vento passa lá fora
e eu, no quadro negro imóvel
- ó muro de fuzilamento!
Morro sem dizer palavra.
O professor parece triste,
talvez por outros motivos.
Manda sentar-me
e eu carrego
ó almazinha assustada,
um zero, como uma auréola...
Rezai, rezai pelas alminhas
dos meninos fuzilados!
Por que é que nos ensinam 
tanta coisa?
Eu queria saber contar
só com os dedos da mão!
O resto é complicação,
um nunca mais acabar.
Eu queria mesmo era poder estudar
teu corpo todo com a mão
até sabê-lo de cor
– como um ceguinho...
E o vento passa lá fora
com a sua memória em branco.
O que ele viu, nem recorda...
e eu nada vi: só adivinho!


Mario Quintana, 
in  Baú de Espantos

 

Elegia



Esta noite eu sonhei que tinha morrido criança
E os que vieram ver o corpo do pobre menino
Apenas sentiram um cheiro evanescente de chocolate
E de balas de coco...
E uma colherinha morta no chão!


Mario Quintana;
IN Velório sem defunto, 1990

MONOTONIA



É segundo por segundo
Que vai o tempo medindo
Todas as coisas do mundo
Num só tic-tac, em suma,
Há tanta monotonia
Que até a felicidade,
Como goteira num balde,
Cansa, aborrece, enfastia...
E a própria dor - quem diria? -
A própria dor acostuma.
E vão se revezando, assim,
Dia e noite, sol e bruma...
E isto afinal não cansa?
Já não há gosto e desgosto
Quando é prevista a mudança.
Ai que vida!
Ainda bem que tudo acaba...
Ai que vida tão cumprida...
Se não houvesse a morte, Maria,
Eu me matava!

Mario Quintana
in: Preparativos de Viagem

REINCIDÊNCIA



Não, não pude mais com essas cantigas
que nos davam um mórbido prazer!
Cansei-me de cantá-las – bom que o diga –
para a minha princesa adormecer...

Me cansei de guardar cartas antigas
que só faziam amarelecer...
E as palavras tão doces, tão amigas,
Numa bela fogueira as fiz arder

À sua voz fechei os meus ouvidos.
Mas esqueci-me de fechar os olhos...
E assim, não eram dias decorridos,

comecei a servir outros sete anos
e a plantar, entre cardos e entre abrolhos,
mais um lindo jardim de desenganos!

Mario Quintana
in: Bau de Espantos



sexta-feira, 11 de abril de 2014

Querias que eu falasse de "poesia"




Querias que eu falasse de "poesia" um pouco
mais... e desprezasse o quotidiano atroz...
querias... era ouvir o som da minha voz
e não um eco - apenas - deste mundo louco!

Mas que te dar, pobre criança, em troco
de tudo que esperavas, ai de nós:
é que eu sou oco... oco... oco...
como o Homem de Lata do "Mágico de Oz"!

Tu o lembras, bem sei... ah! o seu horror
imenso às lágrimas... Porque decerto se enferrujaria...
E tu... Como um lírio do pântano tu me querias,

como uma chuva de ouro a te cobrir devagarinho,
um pássaro de luz... Mas, haverá maior poesia
do que este meu desesperar-me eterno da poesia?!



Mario Quintana,
in Baú de Espantos

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Noturno I




O corpo adormeceu no leito.
A alma baixou às cavernas.
Da alta lucerna, o espírito
vidente e astrólogo, espreita.
E a alma descobria estrelas
do mar, velhas escadas, caracóis de cabelos,
coisas estranhas no tempo perdidas
e tantas - que pareciam, elas,
naufrágios de mil e uma
vidas...
Porém
o corpo
antes que o Dia o recomponha
na sua Humana e Divina Trindade.
o corpo - que não vigia e não sonha
curte a sua animalidade!


Mario Quintana,
in Baú de Espantos


Poesia



Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à 
primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é o 
mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como
um axioma. E, embora evidente, traz sempre um
imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.

 Mario Quintana,
in  “Porta Giratória”

COISAS



Uma rãzinha verde no gris da manhã...
Um sorriso na face de um ceguinho...
Uma nota aguda como uma pergunta de
criança...
Um cheiro agradecido de terra molhada...
Um olhar que nos enche subitamente de azul...

Mario Quintana,
in Caderno H


quarta-feira, 9 de abril de 2014

BICHO & GENTE




Existe um mundo para cada espécie de bicho.
Mas, para cada bicho da espécie humana,
existe um mundo diferente.

Mario Quintana,
in Caderno H




A CHUVA



O bom da chuva é que parece que não tem fim...
Nenhuma das outras coisas me dá essa resignada,
tranquilizadora sensação  de fatalidade.

Mario Quintana,
in Caderno H

DA RELATIVA REALIZAÇÃO



Mover-se com a máxima amplitude
dentro dos próprios limites...

Mario Quintana,
in Caderno H

terça-feira, 8 de abril de 2014

XXII Dos nossos males



É sem razão, e é sem merecimento,
Que a gente a sorte maldiz:
Quanto a mim, sempre odiei o sofrimento,
Mas nunca soube ser feliz... 


Mario Quintana
In: Espelho Mágico

XVI Da Discreta Alegria



Longe do mundo vão, goza o feliz minuto
Que arrebataste às horas distraídas.
Maior prazer não é roubar um fruto
Mas sim ir saboreá-lo às escondidas.


Mário Quintana
In: Espelho Mágico


IMAGEM



O gato é preguiçoso como uma 
segunda-feira.

Maio Quintana,
in Hora H





O CIRCO O MENINO A VIDA



A moça do arame 
Equilibrando a sombrinha 
Era de uma beleza instantânea e fulgurante! 
A moça do arame ia deslizando e despindo-se. 
Lentamente. 
Só para judiar. 
E eu com os olhos cada vez mais arregalados 
Até parecerem dois pires:
Meu tio dizia:
“bobo!” 
Não sabes 
Que elas sempre trazem uma roupa de malha por baixo? 
(Naqueles voluptuosos tempos não havia nem maiôs nem biquínis...) 
Sim! Mas toda a deliciante angústia dos meus olhos virgens
Segredava-me 
Sempre: 
“Quem sabe?”
Eu tinha oito anos e sabia esperar.
Agora não sei esperar mais nada 
Desta nem da outra vida.
No entanto
O menino 
(que não sei como insiste em não morrer em mim) 
ainda e sempre 
apesar de tudo 
apesar de todas as desesperanças,
o menino 
às vezes segreda-me baixinho 
“Titio, que sabe?...”
Ah, meu Deus, essas crianças!

Mario Quintana,
 in Nariz de Vidro - 1984

segunda-feira, 7 de abril de 2014

APARIÇÃO



 Tão de súbito, por sôbre o perfil noturno da
 casaria, tão de súbito surgiu, como um choque,
 um impacto, um milagre, que o coração, aterrado,
 nem lhe sabia o nome: - a lua!
 – a lua ensangüentada  e irreconhecível de 
 Babilônia e Cartago, dos campos malditos de 
 após-batalha, a lua dos parricídios, das
 populações em retirada, dos estupros,
 a lua dos primeiros e dos últimos tempos. 


Mario Quintana,
in Sapato Florido

domingo, 6 de abril de 2014

O vento



O vento gosta é de cantar:
quem faz uma letra para a canção do vento?

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho


X



Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

“Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!”
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
“Que tédio!” o coro dos Amigos clama.

“Mas que vos dar de novo e de imprevisto?”
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
“Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!”

- Mario Quintana,
 in: A Rua dos Cataventos, 1940.

V



Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...

- Mario Quintana, 
in: A Rua dos Cataventos, 1940.

sábado, 5 de abril de 2014

O CAFÉ E O CHÁ



O café é mais intelectual
- o chá, mais espiritual.

Mario Quintana,
in Da preguiça como método de trabalho

QUANDO EU MORRER




Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...


Mario Quintana
In A Rua dos Cataventos

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Quem Ama Inventa



Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

Mario Quintana,
in A cor do invisível