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segunda-feira, 30 de junho de 2014

CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO



Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha Poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.


Mario Quintana 
Canções - 1946

CANÇÃO DOS ROMANCES PERDIDOS




Oh! o silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...
O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...

Aquela última estrela
Que bale, bale, bale,
Perdida na enchente da luz...

Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos,
De onde fugiram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos...

E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!...


Mario Quintana 
Canções


MENTIRAS




Lili vive no mundo do faz de conta...
Faz de conta que isto é um avião.
Zzzzuuu...
Depois aterrissou em piquê e virou trem.
Tuc tuc tuc tuc...
Entrou pelo túnel, chispando.
Mas debaixo da mesa havia bandidos.
Pum! Pum! Pum!
O trem descarrilou.
E o mocinho?
Onde é que está o mocinho?
Meu Deus! onde é que está o mocinho?!
No auge da confusão, levaram Lili para cama, à força.
E o trem ficou tristemente derribado no chão,
fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha.

Mario Quintana ,
in Lili Inventa o Mundo

domingo, 29 de junho de 2014

XXIII



Cidadezinha cheia de graça...
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só...

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...

Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe só num olhar...

- Mario Quintana, 
in: A Rua dos Cataventos, 1940.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

A MISSA DOS INOCENTES


foto by Leo Flores

Se não fora abusar da paciência divina
Eu mandaria rezar missa pelos poemas que não
Conseguiram ir além da terceira ou quarta linha, 
Vítimas dessa mortalidade infantil que, por ignorância dos pais, 
Dizima as mais inocentes criaturinhas, as pobres...
Que tinham tanto azul nos olhos, 
Tanto que dar ao mundo!
Eu mandaria rezar o réquiem mais profundo
Não só pelos meus
Mas por todos os poemas inválidos que se arrastam pelo mundo
E cuja comovedora beleza ultrapassa a dos outros
Porque está, antes e depois de tudo, 
No seu inatingível anseio de beleza!

Mario Quintana
In: Baú de Espantos

A COISA



A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o 
leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se
passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa 
a desconfiar que não foi propriamente dita.

Mario Quintana ,
in Caderno H

COISAS DO TEMPO



Com o tempo, não vamos ficando sozinhos apenas
pelos que se foram: vamos ficando sozinhos
uns dos outros.


Mario Quintana ,
in Caderno H


quinta-feira, 26 de junho de 2014

O VENTO E A CANÇÃO



Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.

E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.

Seu grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.

E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer

Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:

- é que o vôo do poema não pode parar."


 Mario Quintana,
in Baú de Espantos


quarta-feira, 25 de junho de 2014

HAI-KAI




Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?

Mario Quintana,
in Antologia Poética

 

terça-feira, 24 de junho de 2014

SESTA ANTIGA



A ruazinha lagarteando ao sol.
O coreto de música deserto
Aumenta ainda mais o silêncio.
Nem um cachorro.
Este poeminho
Brotando áspero e quebradiço
É a única coisa do mundo.

Mario Quintana,
in Antologia Poética

SOUVENIR D'ENFANCE




Minha primeira namorada me escutava
com um ar de cachorrinho Victor:
Todas aquelas minhas grandes mentirinhas
eram verdades para ela...

Parta mim também!

Mario Quintana,
in Antologia Poética




segunda-feira, 23 de junho de 2014

NOTURNO III


Os cuidados se foram, ou tomaram
Estranhas máscaras de sonho... 

Teus cabelos de naúfrago
Estão bordados no brancor da fronha.  

E onde foste arranjar essas mãos de cera
Que parecem levemente luminosas no escuro? 

Toda casa encalhou nalgum porto noturno:
Ninguém no cais do deserto... 

Apagaram-se os grilos,
As estrelas estão imóveis e tristes como num mapa
sideral.                                                  

Nunca estiveram também tão fixos os olhos dos                        
retratos
Como se fossem apenas fotografias. 

O único rumor de vida,
Esse vem de muito, muito longe: o pobre arroio
antigo                                                    

Gota a gota a fluir no soluço da pia!


Mario Quintana
in Apontamentos de História Sobrenatural



NOTURNO II



Os fantasmas rasgaram as fímbrias no tic-tac dos
despertadores...
Bem feito! São tão antiquados que ainda usam
fímbrias...
Oh! esses despertadores são gatos metálicos
Que rasgam as fímbrias das almas.
Das almas dos vivos e mortos...
Para eles é tudo sucata
Frágil, corosca
De barbante - coisa ótima
Para afiar os dentes eternos do Instante!
A espaços,
No silêncio da casa,
Quebrando o monótono tiquetaquear do tempo,
A tosse asmática do refrigerador
Ou o fundo suspiro
(De quem?)
Que se some no ralo misterioso da pia...
Enquanto isto, nas paredes das salas,
Os velhos retratos aproveitam o escuro para
desbotarem
Ainda mais...
Até que chegue o dia lúcido
E tudo seja, apenas,um doido sonho noturno
Que o teu sorriso de criança apaga!
 
Mario Quintana
In: Apontamento de História Sobrenatural


NOTURNO I



Para Ruy Cirne Lima

Essa voz que se escuta de noite
_ nota (ou sílaba?) que se prolonga indefinidamente,
que quer dizer? Que nos quer dizer?
Talvez a nossa vida seja demasiadamente breve para
apreender-lhe o sentido,
talvez nem cante para nós
mas
para
um eterno ouvido... Serão Anjos? Tristes Anjos,
que desconhecem o maravilhoso espanto de 
viver por um só instante!

Mário Quintana, 
in - Apontamentos de História Sobrenatural 


domingo, 22 de junho de 2014

DE UM DIÁRIO ÍNTIMO DO SÉCULO XXX



Juro que não tenho o mínimo preconceito de cor.
O que há comigo é que acho umas chatas as mulheres
azul-celeste. Piores até que as furta-cor.

Por que não experimentam o cultivo de mulheres brancas e 
pretas, que dizem ter sido as peles primitivas nos
tempos bárbaros?

Fascina-me o contraste absoluto entre ambas.
E se tivesse que escolher entre uma branca e uma
preta, não sei o que faria...

Abri-me a esse respeito com meu velho e sábio amigo
dr Gregorovirus. Ele pôs-se a discorrer sobre 
soluções dialéticas, sobre certa mescla de café 
com leite... Não sei o que é dialética, não sei o
que é café, não sei o que é leite. Por que raios
esses técnicos não se expressam em língua de gente?

Quando eu ia pedir-lhe mais explicações, ele, com
um leve dar de ombros, ergueu-se nos ares, e
quando já estava a uns dois metros de altura gritou-me:

- Vou tratar do caso, vou tratar (ele tem a mania de
 repetir as palavras) A sua única salvação meu pobre 
amigo é a mulata. A mulata!

Fiquei nas mesmas.


Mario Quintana
in: Da Preguiça como Método de Trabalho.

A NOSSA CANÇÃO DE RODA



A nossa canção de roda
tinha nada e tinha tudo
como a voz dos passarinhos-
mas que será que dizia?
A nossa canção de roda
era boba como a lua.
Mas a roda dispersou-se
cada qual perdeu seu par...
Agora,nossos fantasmas meninos
talvez a cantem na lua...
talvez que junto a algum leito
a morte a esteja a cantar
como quem nana um filhinho...
A nossa canção de roda
tinha nada e tinha tudo:era
uma girândola de vozes
chispando
mais lindas do que as estrelas
era uma fogueira acesa
para enganar o medo, o grande medo
que a Noite sentia da sua própria escuridão.

Mario Quintana
in Baú de Espanto








quarta-feira, 18 de junho de 2014

Se eu fosse um padre



Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus .

Mario Quintana,
in AntologiaPoética






terça-feira, 17 de junho de 2014

QUEM AMA...


(cartão by Lucas Sampson)

OS SILÊNCIOS


(cartão by Regina Helena)

ORAÇÃO


(cartão by Regina Helena)

Dai-me a alegria
Do poema de cada dia.
E que ao longo do caminho
Às almas eu distribua
Minha porção de poesia
Sem que ela diminua...
Poesia tanta e tão minha
Que por uma eucaristia
Poesia eu fazê-la sua
"Eis minha carne e meu sangue!"
A minha carne e meu sangue
Em toda a ardente impureza
Deste humano coração...
Mas, ó Coração Divino,
Deixai-me dar de meu vinho,
Deixai-me dar de meu pão!
Que mal faz uma canção?
Basta que tenha beleza...


Mario Quintana
- In A Cor do invisível 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

FORMATAÇÃO DA REGINA HELENA


Coexistência Pacífica



Amai-vos uns aos outros é muito forte para nós:
o mais que podemos fazer, dentro da imperfeição
humana, é suportarmo-nos uns aos outros.

- Mario Quintana, 
in: Caderno H, 1973.

Carreto




Amar é mudar a alma de casa.

- Mario Quintana,
 in: Sapato Florido, 1948.

“PAZ”



Essas cruzes toscas que a gente avista às vezes da
janela do trem, na volta de uma estrada, são belas
como árvores...Nada têm dessas admoestantes cruzes
De cemitério, cheias de um religioso rancor.

As singelas cruzes da estrada não dizem coisa alguma;
Parece apenas viandantes em sentido contrário...

E vão passando por nós – tão naturalmente – como 
Nós passamos por elas

Mario Quintana
In “A vaca e o hipogrifo”


sábado, 14 de junho de 2014

Poeminha do Contra



Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,

Eles passarão...
Eu passarinho!


Mário Quintana,
in Caderno H 

sexta-feira, 13 de junho de 2014

O vento e eu



O vento morria de tédio
porque apenas gostava de cantar
mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
cada vez mais vazia...
Tentei então compor-lhe uma canção
tão comprida como a minha vida
e com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
e fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
Mas o vento, por isso,
me julga agora como ele...
E me dedica um amor solidário, profundo!

Mario Quintana
de 'velório sem Defunto

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Bilhete com endereço




Mas onde já se ouviu falar
Num amor a distância
Num (tele-amor)?!
Num amor de longe...
Eu sonho é um amor pertinho
Um amor juntinho...
E. depois,
Esse calor humano é uma coisa
Que todos – até os executivos – tem.
É algo que acaba se perdendo no ar,
No vento
No frio que agora faz...
Escuta!
O que eu quero,
O que eu amo,
O que desejo em ti
É o teu calor animal!...

Mario Quintana,
in  Baú de Espantos 

Bilhete



Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…

Mario Quintana 
in Esconderijos do Tempo, 


quarta-feira, 11 de junho de 2014

NOTURNO IV



Os grandes animais invisíveis e silenciosos da insônia
Vigilam meu corpo para me devassarem.
Adivinho que são felinos por sua incansável paciência.
Enfaixo-me de medo como um faraó em seus panos
[mortuários.
Inúteis conchas acústicas
Os meus ouvidos têm no escuro a angustiosa forma de
[um ponto-de-interrogação,
Mas ainda escuto. Até o grande relógio-de-pêndulo
[parou.
O tempo está morto de pé dentro dele como um chefe
[asteca.
Tento imaginar-lhe o rosto cheio de rugas como o solo
[gretado de um deserto.
Os felinos farejam-me...
Antes eu estivesse morto e não sentiria nada...
Mas
A primeira coisa que um morto faz depois de enterrado
É abrir novamente os olhos...
Como é que eu sei disso, meu Deus?!
Tão fácil acender a luz... Estendo a mão
Para a lâmpada de cabeceira e toco
Uma parede fria
Úmida
Musgosa...


Mario Quintana
In Baú de Espantos

 

NOTURNO III



Um cartaz luminoso ri no ar
E mais outro... e mais!... Ó Noite, ó minha nega
Toda acesa
De letreiros,
Já pensaste como ainda serias mais linda
Muito mais
Se nós, os poetas, não soubéssemos ler?

Mario Quintana
In Baú de Espantos

NOTURNO I



O corpo adormeceu no leito.
A alma baixou às cavernas.
Da alta lucerna, o espírito
vidente e astrólogo, espreita.
E a alma descobria estrelas
do mar, velhas escadas, caracóis de cabelos,
coisas estranhas no tempo perdidas
e tantas - que pareciam, elas,
naufrágios de mil e uma
vidas...
Porém
o corpo
antes que o Dia o recomponha
na sua Humana e Divina Trindade.
o corpo - que não vigia e não sonha
curte a sua animalidade!

Mario Quintana
In Baú de Espantos


Poesia



Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à
primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é 
o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata 
como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um 
imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.

 Mario Quintana ,
in Porta Giratória

terça-feira, 10 de junho de 2014

O MUNDO DE DEUS



Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado
Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que 
os primeiros astronautas russos, os quais declararam, 
ao voltar, não terem visto Deus no céu.

Porque, se Deus é paz e paz é silêncio afinal, 
deve Ele estar mesmo muito mais na lua do que nas
metrópoles terrenas.

E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer
estas palavras de um personagem de Balzac:
“O deserto é Deus sem os homens”.

Mario Quintana,
Caderno H - 1973







RELÓGIO



O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.

Mario Quintana,
in Caderno H

DA INFINITA SOLIDÃO



Mas só Deus 
– que é único, que não tem par 
– poderia dizer o que é a solidão.


Mario Quintana,
in Na Volta da Esquina





segunda-feira, 9 de junho de 2014

CHOVE



Chuva
Chuva
Chuva
Vontade
Chuva
De fazer não sei bem o que seja
Vontade de escrever Sagesse, de Verlaine
E a tarde gris, tão viúva,
Vai derramando perenemente
as suas lágrimas de chuva
Abundantes
Como lágrimas de fita cômica
Cômica
Cômica

Mario Quintana
In Preparativos de Viagem

VELHOS & MOÇOS



A presunção _ tão desculpável e divertida
nos moços _ é o mais certo sinal de burrice
nos velhos. O verdadeiro fruto da árvore
do conhecimento é a simplicidade.

Mario Quintana,
in Caderno H


ARVORE DOS POEMAS



Quando a árvore dos poemas não dá poemas,
Seus galhos se contorcem todos como mãos de
enterrados vivos.
Os galhos desnudos, ressecos, sem o perdão de Deus!
E, depois, meu Deus, essa lenta procissão de almas
retirantes...
De vez em quando uma tomba, exausta a beira do caminho,
Porque ninguém lhe chega ao lábio o frescor de
cântaro, a doçura de fruto que poderia haver num
poema.
Maldita a geração sem poetas que deixa as almas
Seguirem, seguirem como animais em estútida
Migração!
Quando a árvore dos poemas não dá poemas,
Qual será o destino das almas!

Mario Quintana
in: Bau de Espantos




domingo, 8 de junho de 2014

CADEIRA DE BALANÇO



Quando elas se acordam
do sono, se espantam
das gotas de orvalho
na orla das saias,
dos fios de relva
nos negros sapatos,
quando elas se acordam
na sala de sempre,
na velha cadeira
que a morte as embala...

E olhando o relógio
de junto à janela
onde a única hora,
que era a da sesta,
parou como gota que ia cair,
perpassa no rosto
de cada avozinha

um susto do mundo
que está deste lado...

Que sonho sonhei
que sinto inda um gosto
de beijo apressado?
- diz uma e se espanta:
Que idade terei?
Diz outra:
- Eu corria
menina em um parque...
e como saberia
o tempo que era?

Os pensamentos delas
já não têm sentido.

A morte as embala,
as avozinhas dormem
na deserta sala
onde o relógio marca
a nenhuma hora

enquanto suas almas
vêm sonhar no tempo
o sonho vão do mundo...
e depois se acordam
na sala de sempre

na velha cadeira
em que a morte as embala...

Mario Quintana,
in Apontamentos de História Sobrenatural

sábado, 7 de junho de 2014

SONATINA LUNAR



Os padeiros da lua
derrubam farinha
na noite retinta.
Quem ganha? É o chão

que se pinta e repinta
de giz e carvão.

Rendilha de aranha
na face encantada,
moedinha de prata
escondida na mão,
minh'alma menina
fugiu para a mata.

Meu coração
bate sozinho
no velho moinho
da solidão.

Até eu me fujo...
Eu sou o corujo,
olhar enorme
que nunca dorme.
Nana, nana,
nina, uma,
alma menina...
E sonha comigo
por alguns instantes,
onde estejas tu...
Sonha comigo
como eu era dantes!

Os padeiros da lua
derrubam farinha...
O chão se repinta
de giz e carvão...

Sonha,
menina,
na mata assombrada
enquanto o moinho vai rangendo em vão.

Mario Quintana
in  Apontamentos de História Sobrenatural

sexta-feira, 6 de junho de 2014

CANÇÃO DE INVERNO



O vento assobia de frio
Nas ruas da minha cidade
Enquanto a rosa-dos-ventos
Eternamente despetala-se...

Invoco um tom quente e vivo
_ o lacre num envelope? -
e a névoa, então, de um outro século
no seu frio manto envolve-me

Sinto-me naquela antiga Londres
Onde eu queria ter andado
Nos tempos de Sherlock - o Lógico
E de Oscar - pobre Mágico...

Me lembro desse outro Mário
Entre as ruínas de Cartago,
Mas só me indago: - Aonde irão
Morar os nossos fantasmas?!

E o vento, que anda perdido
Nas ruas novas da Cidade,
Ainda procura, em vão,
Ler os antigos cartazes.


Mário Quintana
in Apontamento de História Sobrenatural

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O POEMA



Uma formiguinha atavessa, em diagonal,
a página ainda em branco. Mas ele, aquela
noite, não escreveu nada. Para quê? Se por
ali já havia passado o frêmito e o mistério
da vida...

Mario Quintana,
in Sapato Florido

COZINHA



Cada brasa palpita
como um coração...

Mario Quintana,
in Sapato Florido

terça-feira, 3 de junho de 2014

A RUA



A rua é um rio de pessoas e de vozes,
um rio terrível que me vai levando,
mas estou só, como se está na infância...
ou quando a morte vai se aproximando...

No ar, agora, que distante aroma?
Decerto eu sem saber pensei em ti...
E um vôo de andorinha na distância
é a minha saudade que eu te mando.

Mas tu, nesses tumultuoso rio,
não fica nunca ao fundo da lembrança
como no seio azul de um redoma...

Tudo se afasta nessa correnteza
onde uma flor,às vezes, fica presa
e um claro riso sobre as águas dança!


Mario Quintana -
In Baú de Espantos

Operação Alma



Há os que fazem materializações...
Grande coisa! Eu faço desmaterializações,
Subjetivações de objetos.
Inclusive sorrisos,
Como aquele que tu me deste um dia com o
mais puro azul de teus olhos
E nunca mais nos vimos. ( Na verdade, a 
gente nunca mais se vê...) No entanto,
Há muito que ele faz parte de certos estados do céu,
De certos instantes de serena, inexplicável alegria,
Assim como um vôo sozinho põe um gesto de adeus 
na paisagem,
Como uma curva de caminho,
Anônima,
Torna-se às vezes a maior recordação de 
toda uma volta ao mundo!

Mario Quintana
In Apontamentos da História Sobrenatural

segunda-feira, 2 de junho de 2014

CECÍLIA MEIRELLES



I

Seus poemas desenhavam seu fino hastil
Suas corolas vibrantes como pequeninas violas
(ou era a vibração incessante dos grilos?)
Seus poemas floriam na tapeçaria ondulante dos prados
Onde os colhia a mão das eternamente amadas
(as que morreram jovens são eternamente amadas…)

II

Seus poemas,
Dentre as páginas de um seu livro,
Apareciam sempre de surpresa,
E era como se a gente descobrisse uma folha seca
Um bilhete de outrora
Uma dor esquecida
Que tem agora o lento e evanescente odor do tempo…

III

E seus poemas eram, de repente, como uma prece jamais ouvida
Que nossos lábios recitavam – ó temerosa delícia!
Como se numa língua desconhecida,
Sem querer falassem
Da brevidade
E da
Eternidade da vida…

IV

Ah, aquela a quem seguiam os versos ondulantes 
como dóceis panteras
E deixava por todas as coisas o misterioso reflexo
 do seu sorriso;
E que na concha de suas mãos, encantada e aflita recebia
A prata das estrelas perdidas…

V

Nem tudo estará perdido
Enquanto nossos lábios não esquecerem
teu nome: Cecília…



Mario Quintana,
in  Antologia Poética